O Ministério Público (MP) decidiu não esperar pelo final do prazo de quatro meses que pediu para apresentar recurso sobre a decisão de não pronúncia e atacou já a decisão de pronúncia do juiz Ivo Rosa. Assim, os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto arguiram esta segunda-feira a nulidade da decisão instrutória de Ivo Rosa sobre José Sócrates e Carlos Santos Silva pela alegada prática de três crimes de branqueamento de capitais.

Porquê? Além de questões técnicas que geram nulidade, os magistrados entendem que uma “desajeitada alteração de detalhes” do despacho de acusação, fez com que Ivo Rosa retirasse a “conclusão absurda de que a vantagem indevida da corrupção” estava a ser recebida por José Sócrates com “fundos que já eram seus”. Uma tese “insustentável em julgamento”, dizem Rosário Teixeira e Vítor Pinto no requerimento a que o Observador teve acesso.

Os magistrados do MP entendem, portanto, que o magistrado que liderou a fase de instrução criminal promoveu uma alteração substancial dos factos quando tal não é permitido pela lei sem o exercício do contraditório. O mesmo argumenta a defesa de José Sócrates mas por razões diferentes das do MP.

A “desajeita alteração de detalhes” que dá Sócrates como dono do dinheiro de Santos Silva

No requerimento será agora apreciado pelo Ivo Rosa (e do qual há lugar a recurso para a Relação de Lisboa caso o juiz de instrução rejeite o mesmo), os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto alegam que o magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal alterou diversos pontos da acusação.

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Em primeiro lugar, argumentam, o juiz escreve no artigo 63 da decisão da pronúncia que José Sócrates oferece informações a Carlos Santos Silva sobre “opções de investimento público nacional” e “apoio em sede de diplomacia económica” sem qualquer localização no tempo, já o MP localiza os factos no “final de 2006” e entende que José Sócrates queria “favorecer o Grupo Lena”, sendo que Carlos Santos Silva “receberia na sua esfera, com origem no Grupo Lena, os montantes necessários para compensar a disponibilidade do arguido José Sócrates.”

Mais importante que tudo: há diversas partes da pronúncia que “continuam a ter referências ao facto dos fundos existentes na esfera de Carlos Santos Silva serem eram já pertença de JS, agindo o primeiro como mero fiduciário.” Na prática, é essa a tese do MP (de que Santos Silva reuniu os fundos numa conta do BES para fazer entregas e pagamentos a Sócrates), o que leva os procuradores a constataram que existe uma “absoluta contradição com o sentido que a pronúncia pretendia dar como indiciado, que era a colocação de Carlos Santos Silva como corruptor ativo”.

“Como a pronúncia não narra detalhes sobre a origem dos fundos existentes nas contas do Carlos Santos Silva mas deixa perceber que eram fundos já pertencentes ao arguido José Sócrates, estaríamos perante uma situação em que este último seria ilegitimidade compensando com o seu próprio dinheiro”, argumentam os procuradores.

O MP dá os seguintes exemplos no seu requerimento para fundamentar a acusação de “absoluta contradição” de o juiz Ivo Rosa manter a tese da acusação de que os fundos de Santos Silva pertenciam a Sócrates ao mesmo tempo que transforma o amigo do ex-primeiro-ministro no corruptor ativo:

  • “Ponto 1815 da pronúncia (…). Despesas de viagens e condomínio do arguido José Sócrates foram pagas com fundos de que o arguido Carlos Santos Silva era fiduciário”.
  • “Ponto 2078 da pronúncia” (…). Pagamentos dos serviços de Domingos Farinho e de Jane Kirby “foi feito com fundos que pertenciam ao arguido José Sócrates, embora colocados na entidade RMF Consulting por Carlos Santos Silva”.

O MP argumenta ainda que existe uma nulidade no facto de a pronúncia de Ivo Rosa alterar os factos da acusação ao transformar a disponibilidade de José Sócrates em favorecer o Grupo Lena a partir do final de 2006 (tese da acusação), num alegado “mercadejar do cargo” de primeiro-ministro em benefício de Carlos Santos Silva sobre “opções de investimento público nacional” e “apoio em sede de diplomacia económica” sem qualquer localização no tempo.

Acresce a tudo isto que a pronúncia defende que “muitos dos atos de branqueamento foram praticados num período temporal em que o beneficiário das entregas de fundos já não estava a exercer funções públicas.” Ou seja, os factos imputados na pronuncia terão “ocorrido em data posterior a Junho de 2011, o que faz com que seja um “caso de corrupção à posteriori, com a circunstância inverosímil de existirem pagamentos mais de três anos de depois de José Sócrates ter cessado funções”.

O MP termina o seu requerimento solicitando ao juiz Ivo Rosa que a “pronúncia, na parte relativa aos arguidos José Sócrates e Carlos Santos Silva, seja declarada nula, passando o seu objeto a integrar a  parte da decisão instrutória de não pronúncia, o qual será visado pelo recurso do MP já informou nos autos que irá instaurar.”

Quer isto dizer que este requerimento de arguição de nulidades nada tem a ver com o recurso sobre a decisão de não pronúncia de Ivo Rosa. Os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto solicitaram um prazo de 120 dias para apresentarem o recurso (e não nulidades) sobre essa parte da decisão instrutória. O recurso será apreciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Defesa de Sócrates quer prazo de 90 dias para arguir nulidades sobre o “novo pedaço de vida”

O advogado Pedro Delille, representante de José Sócrates, também vai arguir a irregularidade da decisão de pronúncia do seu cliente. Isso mesmo deixou expresso num requerimento apresentado esta segunda-feira, onde invoca o justo impedimento para apresentação de tal arguição de nulidade, solicitando um prazo não inferior a 90 dias para preparar tal requerimento, em virtude de a lei apenas conceder três dias.

Delille requer igualmente uma prorrogação do prazo de 120 dias pedido pelo MP para interpor recurso da decisão de não pronúncia. A defesa de José Sócrates quer mais 90 dias (o que perfaz um total de 210 dias) para poder responder ao recurso dos procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto.

A ser deferida esta pretensão, tal faria com que a subida do recurso do MP para a Relação de Lisboa fosse empurrado para um período entre o primeiro e o segundo trimestre de 2022.

No mesmo requerimento, a defesa de José Sócrates, contudo, argumenta já que a decisão de pronúncia contém diversas nulidades que derivam da alteração substancial dos factos por parte do juiz Ivo Rosa.

“Os factos em que a pronúncia se baseia e que (necessariamente) pressupõe e dá como indiciados para lhe imputar três crimes de branqueamento e três crimes de falsificação de documento são outros, novos, diferentes, mesmo (pelo menos por vezes) opostos e contraditórios relativamente aos factos que lhe haviam sido imputados pela acusação”, lê-se no requerimento de Pedro Delille.

“Na base da pronúncia estão os factos que, de acordo, com a decisão instrutória, indiciam que a vantagem tem origem em Carlos Santos Silva e que é ele o dono também da ‘fortuna’. Enquanto que na acusação, o dono da vantagem era originariamente o Grupo Lena e o dono da ‘fortuna’ o ora Requerente [José Sócrates]. Dúvidas não parecem restar de que se trata de um novo e absolutamente diferente, contraditório mesmo, ‘pedaço de vida'” conclui o causídico que defende Sócrates.