Ao fim de 48 horas, a Superliga Europeia parece estar já perto do fim. Num dia que começou com o eco de uma entrevista pouco convincente de Florentino Pérez, que teve a confirmação de que Andrea Agnelli fez jogo duplo, que assistiu à demissão de Ed Woodward e que terminou com uma reunião de emergência e a catadupa de desistências dos clubes ingleses, a proposta nova competição europeia parece ter caído.

E nessa queda, levou consigo derrotados, elegeu vencedores e distinguiu aqueles que querem ficar do lado dos que ganham apesar dos telhados de vidro que não podem esconder. Ao que parece, a Superliga Europeia não vai passar de uma enorme ameaça à realidade que todos conhecemos — mas também é cada vez mais certa a ideia de que o futebol não voltará a ser o mesmo depois das últimas 48 horas.

Leeds United v Liverpool - Premier League

A mensagem que sobrevoou Elland Road, esta segunda-feira, durante o jogo entre o Leeds e o Liverpool

Quem perdeu

Florentino Pérez, Andrea Agnelli, Ed Woodward e os proprietários estrangeiros da Premier League

Quando o carro tem problemas no arranque, a culpa é normalmente do motor. E o motor da Superliga Europeia é formado por um tríade composta por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, Andrea Agnelli, presidente da Juventus, e Ed Woodward, agora ex-vice-presidente do Manchester United. Se o primeiro foi o cérebro e o segundo foi o agente duplo que trabalhou com um pé na Superliga e outro junto da UEFA, o terceiro confirmou que era o elo mais fraco e foi a primeira vítima do terramoto.

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Mas vamos por pontos. Florentino Pérez nunca esteve sequer perto de ter o lugar em risco mas voltou a confirmar, uma vez mais, que é o maior vilão do futebol europeu. O presidente do Real Madrid foi o grande impulsionador da Superliga Europeia, tentou justificar o plano depois de a reação geral ter sido negativa, invocou a necessidade de salvar o futebol dos danos provocados pela pandemia mas vê agora o projeto que o ocupou nos últimos anos chegar perto da ruína ainda antes de começar. Se o Real Madrid já tinha dificuldades em angariar alguns apoios devido a esta crença persistente numa espécie de elite do futebol, Pérez provou que acredita mesmo que uns estão acima dos outros — e dificilmente vai recuperar, no que toca à opinião pública, desse rótulo. O presidente dos merengues tentou autointitular-se o líder da rebelião e quis ficar na história como o iluminado que revolucionou o futebol, ao invés de o reformar, mas parece ter perdido a primeira batalha.

A defesa da Superliga, por Florentino Pérez: “Estava a perder interesse, há muitos jogos de má qualidade. Os jovens não se interessam”

Depois, Andrea Agnelli. O bilionário italiano foi um autêntico mestre do jogo duplo nos últimos anos, enquanto presidente da Associação Europeia de Clubes (AEC) e amigo próximo de Aleksander Čeferin, o líder da UEFA. Com o anúncio oficial da Superliga e confirmada a guerra civil dentro do futebol europeu, Agnelli demitiu-se do cargo na AEC, perdeu a ligação próxima a Čeferin e a respetiva esfera de influência que essa amizade garantia — em troca, aparentemente, do cargo de vice-presidente da nova competição e um dos líderes assumidos do grupo de dissidentes. Agora, se a Superliga acabar mesmo por cair, o presidente da Juventus pode ficar sem nada. Alguns meios de comunicação social chegaram a avançar que o italiano, tal como Ed Woodward, também se tinha demitido mas o clube apressou-se a recusar esse cenário. Andrea Agnelli fica: e fica na reta final de uma temporada em que a Juventus está fora da Liga dos Campeões e no quarto lugar da Serie A.

Andrea Agnelli, o mestre do jogo duplo que traiu o amigo (e compadre) Čeferin

Por fim, Ed Woodward. Embora, no comunicado oficial, o Manchester United não faça qualquer referência à Superliga Europeia e garanta que a saída do inglês só vai acontecer no final de 2021 e já estava programada, a demissão do vice-presidente não deixa de ter um timing interessante. Woodward, o grande porta-voz da família Glazer, dona do Manchester United, parece ter sido um peão que teve de cair para que o jogo não fosse perdido por xeque-mate. E nesta ronda pelos derrotados, os Glazer não deixam de se unir aos restantes proprietários estrangeiros da Premier League — como os do Arsenal, do Liverpool, do Chelsea ou do Manchester City — como algumas das figuras que pior saíram de todo este circo. “Já tinha dito que assim que isto ficar resolvido, eles têm de ir. Acabou. Estou irritado com o Liverpool. O Klopp atirou-os para debaixo do autocarro, o Henderson também. Não há nada que reste para os donos. Não sei como é que podem continuar. Não vejo um futuro para esta liderança e acho que eles só estão a piorar as coisas”, atirou Jamie Carragher, histórico dos reds, sobre os norte-americanos do Fenway Sports Group, donos do clube de Anfield. Os magnatas norte-americanos, árabes e russos trazem dinheiro; mas afastam a característica popular que é intrínseca ao futebol.

Manchester City v Manchester United - Carabao Cup: Semi Final

Ed Woodward, vice-presidente do Manchester United, apresentou a demissão ao início da noite desta terça-feira

Quem ganhou

Os adeptos, os treinadores e os jogadores, a UEFA e o Bayern Munique

De forma óbvia, e se mais provas fossem necessárias, os adeptos mostraram que são realmente os donos do futebol. Com especial intensidade em Inglaterra, onde os apoiantes dos big six se deslocaram aos estádios ainda durante esta segunda-feira com tarjas e cartazes que se opunham à Superliga, os verdadeiros fãs de futebol mostraram que não acreditam em ligas fechadas, em apuramentos vitalícios ou ao fim de uma política de retribuição e merecimento. Para a história, fica o protesto dos adeptos do Chelsea, que se juntaram junto a Stamford Bridge, na antecâmara do jogo dos blues contra o Brighton, começando por exigir a saída do clube do projeto e acabando a festejar essa mesma saída, ainda que quando apenas avançada pela comunicação social.

Depois, os treinadores e os jogadores. Se Jürgen Klopp, Marcelo Bielsa e Pep Guardiola foram dos técnicos mais inflamados, com o selecionador nacional Fernando Santos a juntar-se ao grupo já durante esta terça-feira para garantir que nem sequer “imaginava” realizar uma convocatória sem os jogadores dos 12 clubes, acabaram por ser os próprios atletas a tomar a dianteira da revolta. Em Inglaterra, os portugueses Bruno Fernandes e João Cancelo foram dos primeiros a criticar a nova competição, seguidos desde logo por Podence, com a frase “Os sonhos não podem ser comprados”. Jordan Henderson deu um passo em frente na Premier League, ao convocar uma reunião de emergência entre todos os capitães e assinar depois uma posição geral de todo o plantel do Liverpool, e Ander Herrera teve uma das declarações mais conscientes sobre o assunto. O médio do PSG, que nem chegou a estar envolvido no episódio, garantiu que não podia ficar “calado” sobre o assunto.

Chelsea v Brighton & Hove Albion - Premier League

Petr Cech pediu calma aos adeptos que se juntaram perto de Stamford Bridge, na antecâmara do jogo do Chelsea contra o Brighton e em protesto contra a Superliga

“Apaixonei-me pelo futebol popular, pelo futebol dos adeptos, com o sonho de ver a equipa do meu coração competir contra os maiores. Se esta Superliga Europeia avança, esses sonhos chegam ao fim, os sonhos dos adeptos das equipas que não são grandes de conseguirem vencer em campo, ao competir nas melhores competições, chega ao fim. Eu amo o futebol e não posso ficar calado sobre isto, acredito numa Liga dos Campeões melhorada, mas não nos ricos a roubarem o que as pessoas criaram, que é nada mais que o desporto mais bonito do planeta”, atirou o espanhol, que já jogou no Manchester United.

Depois, a UEFA, com Aleksander Čeferin à cabeça. O esloveno foi traído por um dos melhores amigos, Andrea Agnelli, a quem telefonou no passado sábado e lhe garantiu que tudo não passava de um rumor. A ameaça de que os atuais semi-finalistas da Liga dos Campeões seriam de imediato afastados da atual edição da competição, para além da garantia de que todos os clubes, treinadores e jogadores envolvidos na Superliga não poderiam voltar a competir em provas nacionais e internacionais, foi o suficiente para causar o pânico nos balneários e nas seleções. Čeferin, que sempre foi um confesso opositor de qualquer competição semelhante a esta, ganhou a primeira batalha contra o grupo de dissidentes. E saiu ainda mais reforçado na liderança da UEFA — uma liderança que conquistou, logo à partida, com base nos apoios que angariou junto das ligas europeias inferiores. Ainda assim, a notícia do Mundo Deportivo, de que o organismo terá pago aos clubes ingleses para que estes abandonassem o projeto, dificilmente vai ficar por aqui.

UEFA ataca e vai banir jogadores dos dissidentes de Europeus e Mundiais: “Esta ideia é cuspir na cara dos adeptos e na sociedade”

Por fim, o Bayern Munique. Não só por não ter chegado a envolver-se oficialmente no projeto, tal como o Borussia Dortmund e o PSG, mas principalmente pela resposta que deu a Florentino Pérez. Num comentário à entrevista que o presidente do Real Madrid deu na noite desta segunda-feira, onde indicou que a Superliga iria “salvar” o futebol das perdas associadas à pandemia, Karl-Heinz Rummenigge lembrou que a solução é “reduzir custos”. “Não acredito que a Superliga vá resolver os problemas financeiros dos clubes europeus que aparecem como consequência da pandemia. Ao invés disso, todos os clubes da Europa deveriam trabalhar em solidariedade para garantir que os custos estruturais, especialmente os salários dos jogadores e os honorários dos empresários, estejam em linha com as receitas, para tornar o futebol europeu mais racional”, atirou o presidente dos bávaros, já depois de o Bayern ter emitido um comunicado oficial a garantir que não iria entrar na Superliga.

FBL-FRA-LIGUE1-PSG

O presidente do PSG recusou liderar a Associação Europeia de Clubes mas deve ficar numa posição de mediação entre a UEFA e o grupo de dissidentes

Quem acha que ganhou

A FIFA e o PSG

À cabeça, a FIFA. Se é verdade que Gianni Infantino se colocou ao lado da UEFA na defesa do futebol tal e qual como ele é, sem espaço para ligas fechadas nem apuramentos vitalícios, também é verdade que o presidente do organismo que regula o futebol mundial não se pode esquecer de que a própria FIFA tem inúmeros telhados de vidro. Falar de ganância, sede de poder e desrespeito pelo elo mais fraco em nome de uma entidade que está constantemente e continuamente envolvida em escândalos de corrupção não é, de todo, a decisão mais coerente.

E, como não podia deixar de ser, o PSG. O clube francês, em conjunto com o Bayern Munique e o Borussia Dortmund, não chegou a envolver-se na Superliga — ainda que Florentino Pérez tenha indicado que a presença dos três estava garantida — e acabou por ganhar uma posição de destaque no puzzle do futebol europeu. Com a saída de Andrea Agnelli do cargo de presidente da AEC, Nasser Al-Khelaifi, líder do PSG, chegou a ter a possibilidade de substituir o italiano mas teve margem de manobra suficiente para recusar e manter a posição de vice-presidente e o assento no Comité Executivo da UEFA. Além disso, o presidente dos franceses deve agora funcionar como o grande mediador entre o organismo, personificado em Čeferin, e o grupo de dissidentes, personificado em Pérez.

Ainda assim, não é possível esquecer que o PSG é o maior exemplo do poder que o dinheiro tem no futebol atual. O negócio que levou Neymar para Paris, em 2017 e a troco de 222 milhões de euros, implementou o incomportável panorama financeiro que é hoje a realidade das ligas europeias. E o clube francês não pode simplesmente lavar as mãos de uma consequência do problema que criou.