“Já vi muitas coisas na vida mas nunca vi nada como isto. De forma óbvia, a ganância é tão poderosa que todos os valores humanos se evaporam. Para algumas pessoas, desaparece tudo. Mas nós somos diferentes e vamos continuar a ser diferentes. Na vida, é sempre bom aprender quem é quem. Talvez tenhamos sido ingénuos e não nos apercebemos de que tínhamos cobras tão perto de nós. Agora sabemos”. Foi assim, sem meias palavras, que o presidente da UEFA explicou ao mundo que a ideia, a formulação e a confirmação da nova Superliga Europeia surgiu de cabeças muito próximas à cúpula do organismo que regula o futebol europeu.

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E Aleksander Čeferin não deixou à imaginação dos mais atentos a identidade das “cobras”. Falou sobre Ed Woodward, vice-presidente do Manchester United. E falou detalhadamente sobre Andrea Agnelli, presidente da Juventus. “Fui advogado criminal durante 24 anos e conheci muitas pessoas, mas nunca tinha visto pessoas como estas. E nem sequer quero falar muito sobre Andrea Agnelli. É provavelmente uma das maiores desilusões, se não a maior de todas. Não quero tornar tudo demasiado pessoal mas a verdade é que nunca vi uma pessoa mentir tantas vezes e tão persistentemente. Foi inacreditável. Falei com ele no sábado à tarde e disse-me que eram só rumores, para não me preocupar, que nada se passava. Depois disse-me que me ligava daí a uma hora e desligou o telefone. No dia seguinte, soubemos da notícia”, explicou o presidente da UEFA.

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Ora, mas como é que Andrea Agnelli, de cuja filha Čeferin é padrinho, foi “a maior de todas” as desilusões? O presidente da Juventus, de 45 anos, era até às últimas horas o presidente da Associação Europeia de Clubes (AEC). Segundo o The Athletic, o italiano já abandonou o cargo que ocupava desde 2012, depois do anúncio da Superliga Europeia, retirou os bianconeri da mesma AEC e deixou ainda o Comité Executivo da UEFA, do qual fazia parte desde 2015. Agnelli vai agora assumir a posição de vice-presidente da nova competição — depois de durante anos ter sido um mestre do jogo duplo, entre trabalhar ao lado de Florentino Pérez e Joel Glazer na preparação da Superliga e manter-se no círculo interno de Čeferin, com cargos relevantes e uma esfera de influência assinalável.

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Na passada sexta-feira, a AEC reuniu devido aos rumores que se iam intensificando sobre uma nova competição criada por e para um grupo de clubes da elite europeia. Agnelli, como presidente, esteva naturalmente presente — até para acalmar o pânico, tal como fez na chamada telefónica com Čeferin no sábado à tarde. Dois dias depois, no domingo, a AEC convocou uma nova reunião, desta feita de emergência, com o objetivo de engendrar um plano para travar os “separatistas”. Todos os clubes envolvidos com a Superliga Europeia foram convidados e nenhum compareceu; assim como Andrea Agnelli, que apesar de nessa altura ser ainda o presidente da Associação também não marcou presença, engrossando a ideia de que a nova competição tinha passado de rumor a realidade. A desilusão estava, por fim, completa.

Desde que Aleksander Čeferin assumiu a liderança da UEFA, em 2016 – em grande parte, devido aos apoios que angariou entre as ligas inferiores e os respetivos clubes –, que Andrea Agnelli tem sido um dos braços direitos do esloveno. A relação próxima de amizade entre os dois era pública e visível e deu um passo largo quando, há dois anos, o presidente da Juventus convidou Čeferin para ser o padrinho da filha, que então tinha apenas seis meses. A pergunta que agora surge é óbvia: estava Agnelli, desde o primeiro dia, a usar a amizade que tinha com o presidente da UEFA para angariar maior influência na busca por mais dinheiro para a Juventus e para os restantes gigantes?

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Em 2019, há dois anos, um correspondente do The New York Times escreveu precisamente sobre a ligação pessoal que unia os dois homens – e sobre os rumores que já existiam e que eram afastados pelo presidente da UEFA. “Čeferin diz que já ouviu as histórias sobre como Agnelli lhe ofereceu uma volta num Ferrari, mas diz que nunca conduziu nenhum; sobre as viagens no jato privado do italiano, mas diz que nunca voaram juntos; e até os sussurros sobre as motivações por detrás da decisão de escolher Čeferin para ser o padrinho da filha de seis meses, que diz ser uma ‘honra’ que transcende o futebol”, escreveu, na altura, o jornalista Tariq Panja. O líder da UEFA, no mesmo artigo, garantiu que todos os rumores de segundas intenções eram “estúpidos”.

“Esses rumores no futebol, que depois são partilhados a toda a hora, são tão pouco lógicos, tão estúpidos. Num dia, o Agnelli é muito importante e pode influenciar tudo e todos porque é meu amigo pessoal. No dia seguinte, já é o PSG, porque estão a comprar os nossos direitos. Ao terceiro dia, só ajudamos o Real Madrid e é por isso que estiveram quatro vezes na final”, atirou o esloveno. Esta segunda-feira, o jornalista do The New York Times recordou o artigo no Twitter. “E pensar que não foi assim há muito tempo que Agnelli criou uma amizade com o presidente da UEFA. Que, com tudo isto, acabou por trair”, escreveu Tariq Panja.

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Ainda assim, e como presidente da AEC, Andrea Agnelli nunca escondeu que tinha uma visão ligeiramente mais revolucionária do que o amigo. Na última década, o bilionário italiano falou diversas vezes sobre a necessidade de mudar a Liga dos Campeões, que estava “quebrada” porque os grandes clubes perdiam milhares de milhões em receitas a jogar contra equipas menores ao invés de defrontarem frequentemente os outros gigantes. “Os jogadores estão presos a demasiados jogos que não são competitivos, tanto a nível interno como a nível internacional”, chegou a dizer no mês passado, acrescentando que o futebol estava a perder uma enorme oportunidade para fazer a modalidade “crescer”.

Aleksander Čeferin, por outro lado, sempre defendeu a reforma – ao invés da revolução. Apontou baterias ao objetivo de mudar a Liga dos Campeões, através do plano que também foi apresentado esta segunda-feira, mas nunca equacionou a criação de uma nova competição só com alguns clubes. E deixou tudo isso bem claro em 2018, quando um documento que alegadamente revelava os planos iniciais daquilo que é agora a Superliga Europeia surgiu na comunicação social. “A Superliga não vai acontecer. É pura ficção ou um sonho”, reagiu o esloveno. Na altura, há três anos e como presidente da AEC, Andrea Agnelli colocou-se ao lado do presidente da UEFA: em declarações em que acabaram por envelhecer mal. “Posso confirmar que nunca vimos, nunca discutimos e nunca estivemos envolvidos na criação deste documento. Estamos totalmente alinhados com a UEFA”, disse o italiano.

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Certo é que, com a confirmação de que o projeto da Superliga Europeia existe, foi preparado ao longo de anos e tem o objetivo de seguir em frente, é possível juntar algumas pontas soltas que agora encaixam no puzzle na perfeição – incluindo a temporada desportiva da Juventus. Para além da eliminação nos oitavos de final da Liga dos Campeões, contra o FC Porto e falhando novamente o objetivo de voltar a conquistar o troféu 25 anos depois, a equipa de Andrea Pirlo caiu no passado domingo para o quarto lugar da Serie A, ao perder com a Atalanta. Com apenas mais dois pontos do que o Nápoles e ainda com confrontos com o AC Milan e o Inter Milão até ao final da época, os bianconeri estão agora numa posição muito frágil na liga italiana e começam até a ter em risco o apuramento direto para a Champions. Algo que, percebe-se agora, pode não ser propriamente um problema nem para a Juventus nem para Andrea Agnelli.