A passagem do país do estado de emergência para o estado de calamidade “levanta sérios problemas de natureza constitucional” e pode até ser uma “fraude constitucional”. O alerta foi deixado pelo constitucionalista Paulo Otero, na rádio Observador, onde elencou uma série de medidas — do uso obrigatório de máscara ao limite de pessoas nos restaurantes, passando pelo confinamento e recolher obrigatório — que, no seu entender, deixarão mesmo de ser legais.
No programa Explicador, em que participou durante a manhã desta quarta-feira, o constitucionalista foi claro: a mudança para a situação de calamidade, que o Observador noticiou, é sobretudo um “sinal para o exterior”, de maneira a que a população perceba que há sinais positivos no controlo da pandemia. O problema é que essa transição levanta problemas legais, uma vez que o estado de calamidade está pensado para um “cenário de acidente ou catástrofe”, como incêndios, inundações ou terramotos, que seja “geograficamente circunscrito”, não se podendo “transformar a situação num conjunto de calamidades ao nível de cada município”.
Fim do estado de emergência. “O Governo não pode multar quem não usa máscara”
Como a calamidade não permite suspender direitos fundamentais, no entender do constitucionalista a partir deste sábado — dia em que Portugal deixa de estar em estado de emergência, como anunciou esta terça-feira Marcelo Rebelo de Sousa — deixa de ser possível obrigar as pessoas a utilizar máscara, impor confinamento ou recolher obrigatório ou limites ao número de pessoas por mesa nos restaurantes (de seis pessoas, prevê o plano do Governo), uma vez que isto representaria uma limitação ao direito constitucional de reunião.
Isto provoca ainda um problema adicional: se é verdade que durante o estado de calamidade uma pessoa pode ser punida por crime de desobediência face a ordens das autoridades, para Paulo Otero o visado poderá sempre argumentar em tribunal que o fundamento dessa ordem, se se referir a um dos tal direitos que a calamidade não poderia suspender — por exemplo, se alguém estiver a jantar num restaurante com mais de cinco pessoas na mesma mesa — não é constitucional.
Por outro lado, se o estado de emergência é um quadro previsto na Constituição, que permite a suspensão de direitos fundamentais e envolve os três principais órgãos de soberania — o Presidente da República desencadeia o processo, o Parlamento aprova e o Governo executa –, o estado de calamidade é um quadro mais limitado, que se resume a uma “necessidade administrativa” e não uma “necessidade constitucional” e depende apenas da aprovação em Conselho de Ministros, gozando assim, no entender do jurista, “de menor legitimidade política”, uma vez que PR e Parlamento ficam “marginalizados” neste processo.
Esta não é a primeira vez que a preocupação quanto à legitimidade de normas deste género é levantada — o mesmo aconteceu no ano passado, quando em maio se transitou também da emergência (a primeira desde 1976) para a calamidade, e no entender de Otero se desta vez for aplicada da mesma maneira estaremos perante uma “fraude constitucional”, porque “permitiu ao Governo fazer tudo o que fazia em estado de emergência”.
No ano passado, especialistas ouvidos pelo Observador deixavam os mesmos alertas. “A situação de calamidade pode justificar determinadas medidas de resposta por parte do Governo em relação a certas situações, e que podem até passar por limitações à circulação de pessoas, mas não ao ponto de haver limitação das liberdades como acontece com o estado de emergência”, dizia o constitucionalista Jorge Miranda. “O estado de calamidade é o grau mais elevado decretado ao abrigo da lei de bases da Proteção Civil — e neste contexto estamos em plena normalidade constitucional. Esta lei aplica-se a um determinado evento, com uma circunscrição geográfica e temporal muito limitada”, defendia então Raquel Brízida Castro, também especialista em Direito Constitucional e professora na Universidade de Lisboa.
Governo vai avançar com última fase de desconfinamento. O que aí vem?
O problema chegou a levar o Governo a ponderar propor um modelo alternativo, que passaria por uma lei de emergência sanitária que permitisse evitar problemas a nível constitucional nestes períodos de transição entre a emergência e a normalidade. Mas o Executivo acabou por deixar cair a ideia. Esta quinta-feira, o Executivo detalhará, após uma reunião do Conselho de Ministros, quais as medidas que aplicará em concreto nesta próxima fase, embora já se conheça parte do plano que aí vem, e que implicará, como o Observador noticiou, a continuação das reuniões com especialistas e políticos no Infarmed.