Os tempos da geringonça já lá vão, mas nos últimos meses a relação entre Governo e PCP tem sido marcada por um outro compromisso: o do Orçamento do Estado para este ano, que o PCP viabilizou — desta vez, sem a companhia do Bloco de Esquerda — e que agora quer ver cumprido, subindo cada vez mais o tom nas exigências sobre a execução orçamental. As reuniões regulares até falharam no último mês, mas o Governo quer assegurar-se de que não há falhas nem atrasos na relação com os comunistas e vai apressar-se a marcar dois novos encontros.

Os avisos do PCP têm sido claros: na semana passada, Jerónimo de Sousa queixava-se de ver os apoios e medidas previstos no Orçamento que ajudou a viabilizar “arrastados ou pervertidos” pelo Governo PS. E ao Observador, o líder parlamentar, João Oliveira, detalha alguns dos “exemplos mais evidentes” de dessintonia entre o Executivo e os comunistas na execução das medidas: é o caso do subsídio de risco, em que a aplicação “fica muito aquém” do desejado porque, segundo o PCP, “o Governo tem encontrado justificações diversas para limitar o âmbito dos trabalhadores que o recebem, inclusivamente os da linha da frente”. No Parlamento, esta semana, o ministro das Finanças, João Leão, até assumia que não faria sentido que profissionais “expostos ao risco” não estivessem “abrangidos”, pelo que a questão terá de ser “vista”.

A queixa estende-se aos “trabalhadores da cultura independentes” que continuam “sem acesso aos apoios” — da esquerda à direita, tem havido críticas sobre os apoios que são recusados por questões burocráticas ou sem grandes explicações, tal como sobre apoios anunciados e “reanunciados” várias vezes. O mesmo acontece com a suspensão do pagamento por conta, com que o PCP também confrontou o ministro das Finanças, João Leão, no Parlamento, depois de ter visto o Executivo a lançar a opção de que o pagamento seja feito a prestações. Na audição, o governante fez por descansar os comunistas e assegurou rapidamente que haverá um despacho em breve para clarificar que esta é uma possibilidade, mas que as empresas que pretendam ficar dispensadas do pagamento o podem fazer.

Governo atento ao risco, retoma reuniões

O desentendimento não é de somenos, uma vez que o próprio Governo sinaliza as falhas na execução orçamental como o principal problema com que se pode deparar na relação com os comunistas — incluindo na relação futura. Dentro do Executivo, existe a noção de que o partido que viabilizou um Orçamento em que o Bloco de Esquerda não alinhou precisamente por argumentar que faltavam apoios essenciais precisa de garantias e de manter uma relação de confiança para poder encarar com bons olhos a negociação do próximo Orçamento, daqui a uns meses.

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E esse perigo é verbalizado por João Oliveira. Embora ainda não haja “qualquer abordagem” sobre o próximo Orçamento, “é preciso ver como é feita a execução deste”: “Naturalmente, a execução é um fator muito relevante em relação ao processo do orçamento. A questão do OE não se esgota apenas com a sua aprovação no Parlamento: não se pode dar por arrumada”, avisa o líder parlamentar, que há semanas deixava à Lusa um alerta: quanto maior for a execução do Orçamento atual, mais “fácil” será a negociação do próximo.

Até agora, essa execução era acompanhada quinzenalmente, numa primeira fase, e de três em três semanas, numa segunda, pelo PCP, que se reunia com o Governo para perceber exatamente quais as medidas que estavam a ser cumpridas como combinado e quais as que estavam a ficar para trás. Mas, segundo o líder parlamentar, esse tempo “já lá vai”: “Essa regularidade já não tem existido”, por motivos “de trabalho, diversos”, e as questões vão sendo colocadas de forma “específica” ao Governo.

E o Executivo tem todo o interesse resolver esse ‘afastamento’ momentâneo. Ao Observador, fonte do Governo assume que houve de facto “um atraso de uma quinzena”, tendo o último encontro acontecido 1 de abril, mas a intenção é “continuar” e de forma “regular”. O Executivo vai aliás marcar novas reuniões, desta vez sobre as áreas da AdminIstração Interna e da Saúde, já na sexta-feira: deste lado, há todo o interesse em assegurar que os encontros continuam a ser “regulares”.

Reuniões a ritmos diferentes e atenção aos avisos de Pedro Nuno: assim vão as relações entre Governo e esquerda

Do lado do PCP, desconfiança. Não em relação às medidas que são executadas: “As medidas que são cumpridas integralmente têm um impacto significativo e quando são cumpridas nem chega a haver problemas”, diz João Oliveira, lembrando a proposta comunista, que foi acolhida, para garantir o pagamento a 100% dos salários em lay-off. “A questão global é essa noção de que Governo não está a utilizar toda a capacidade que OE permite, em particular cumprimento do que está inscrito no OE”. E qual é a explicação do Executivo para isto? “Sucessivos pretextos”, queixa-se o PCP.

Não é exatamente uma queixa nova, porque os comunistas já verificavam antes, “isoladamente, nalguns momentos”, que havia medidas que não chegavam a ver a luz do dia. “Entretanto no ano passado houve aquela circunstância absurda de se ter aprovado um Orçamento Suplementar” — aprovado por PSD e BE mas sem o PCP — “que nem sequer inscrevia uma resposta aos problemas do país e assumia até cortes nos salários”. Nesse caso, “não foi problema de execução, foi não prever respostas para o país”.

O problema é que agora o PCP vê na execução curta de medidas um “denominador comum” e vê essa opção com “incompreensão”. “Havendo um Orçamento que inscreve uma base como a que há, não há justificação para que o Governo não a utilize”, lamenta o comunista. Se o Bloco diz que o Orçamento é insuficiente e por isso não ajudou a viabilizá-lo, pela primeira vez desde a assinatura dos acordos da geringonça — e viu na expansão dos apoios sociais, feita pelo Governo já este ano e já com o OE em vigor, prova disso mesmo — o PCP vira o argumento ao contrário: “O Governo só criou novos apoios porque o Orçamento lhe dava margem para isso e tinha a base orçamental que tinha sem precisar de um orçamento retificativo”.

Em resumo, para os comunistas, “o problema é que o Governo faz a opção de responder às metas do défice e não às necessidades do país”. E é um “problema” a que o Governo estará atento, já com os olhos postos nas dificuldades que o Orçamento para 2022 poderá trazer.