Mais um ano de pandemia pela frente, com um Orçamento a prometer instabilidade, umas eleições autárquicas na agenda e uma ‘geringonça’ enterrada. À esquerda, são muitas as dúvidas no horizonte, sendo certo que os ritmos dos contactos entre os partidos e o Governo seguem diferentes — com o Bloco de Esquerda há reuniões, mas não para negociar nem com ritmo regular; no caso do PCP são quinzenais, mas sobre o Orçamento anterior; com o PAN também há reuniões sobre o Orçamento, mas sem periodicidade definida. E a esquerda fica atenta aos sinais que chegam do PS, sejam tweets de António Costa a elogiar os comunistas, sinais de nostalgia do primeiro-ministro ou avisos de Pedro Nuno Santos a exigir “cooperação” com ambos os partidos.

Se a corda pareceu romper com o Bloco no último Orçamento do Estado, o primeiro em que o partido de Catarina Martins avançou para um voto contra, a relação entre os bloquistas e o Governo é agora feita de encontros muito pontuais e de jogos de sombras. As reuniões, apurou o Observador, acontecem quando o Governo as convoca, mas não de forma regular: exemplo disso foi um encontro na altura em que explodiu a polémica sobre o homicídio no SEF, em que o Executivo chamou o BE para lhe dar explicações; reuniões que o Governo terá usado para fornecer dados a propósito da pandemia; ou encontros quando o tema são Orçamentos que o Bloco aprovou, ou seja, Orçamentos anteriores ao de 2021 que ainda têm matérias por executar. Nesses casos, quando se aproxima a aprovação de uma proposta de um partido, o Governo tem por hábito estabelecer contacto e avisar (caso, recentemente, de um contacto com o PCP para chamar a atenção para a aprovação, em Conselho de Ministros, do aumento extraordinário das pensões mais baixas).

Já sobre matérias orçamentais ou negociações sobre apoios económicos e sociais, por exemplo — e mesmo que algumas das medidas que o BE tinha proposto no OE tenham entretanto avançado pela mão do Executivo –, nada. Se para os bloquistas isto é sinal de que o Executivo alimenta a ideia de abertura negocial mas já não estará a contar com o partido, a versão do Governo é bem diferente. As reuniões têm existido sempre que se justifica e no futuro, sempre que for o caso, o Bloco será chamado a São Bento e contará com “disponibilidade total” para conversar, garante ao Observador fonte do Executivo — aproveitando para frisar que os bloquistas nunca pediram, pelo seu lado, nenhuma reunião ao Governo. Mesmo tendo a direção do BE, na moção que levará à convenção do partido, em maio, vertido avisos dirigidos ao PS contra “vias centristas” e mostrado disponibilidade para “maiorias de esquerda”.

PCP é a “âncora” com quem existe hora marcada

Entretanto, continuam a correr as reuniões quinzenais com o PCP, embora, sublinham tanto o Governo como os comunistas, essas digam respeito à execução do último Orçamento do Estado, que os comunistas viabilizaram. O PCP é o único partido com o qual existe essa “âncora”, ou essa periodicidade definida, explica a mesma fonte governamental, justificando a mesma com a enorme massa de medidas dos comunistas que foram aprovadas no Orçamento anterior: quanto mais medidas incluídas no papel, mais contas a prestar no rescaldo. Com o PAN e o PEV, por exemplo, a solução não é a mesma e os contactos vão-se fazendo à medida do necessário.

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O PCP segue atento à concretização das medidas que propôs e afasta a ideia de um Orçamento retificativo, que o Bloco continua a garantir ser desejável e necessário — e que no Executivo é rejeitada como uma forma de “pressão” do BE. E os elogios de António Costa continuam a ser dirigidos aos comunistas — no dia do centenário do PCP, a 6 de março, pouco antes de Jerónimo de Sousa assegurar no palco que não seria uma “força de apoio ao PS” o primeiro-ministro recorria ao Twitter para parabenizar o PCP e aproveitava para se congratular pela “forma franca” como os partidos têm conseguido nos últimos anos (leia-se nos tempos da geringonça e no primeiro Orçamento do pós) “encontrar respostas comuns para os problemas do país e dos portugueses, no respeito da identidade própria de uma esquerda plural”.

Já no debate bimestral desta quarta-feira, Costa dirigiu-se, entre a ironia e a nostalgia, a Catarina Martins apelando a que se lembrasse das “excelentes memórias” da legislatura passada — a da geringonça — e não se “afastasse” delas. Com um reparo: o ano anterior, acrescentou Costa, também foi de “boa memória”, mas, nesse, o executivo acabou a contar apenas com o PCP para as contas orçamentais.

Se o PCP sinalizou, quando decidiu viabilizar o Orçamento, que sinais extra-orçamentais — caso do aumento do salário mínimo e da alteração das leis laborais — também ficavam dados, para já não há reuniões nem contactos a nível da legislação laboral. Tanto o Bloco de Esquerda como o PS já deram nota de que avançarão este mês com projetos de regulação do teletrabalho, com fonte do BE a esclarecer que essa negociação se fará apenas “em sede de comissão parlamentar”. No debate, o Governo tentou descansar o PCP, frisando que o Livro Verde, que vai apresentar em sede de concertação social, vai incluir normas para regular o teletrabalho e o trabalho em plataformas digitais. Os comunistas anotaram e prometeram “acompanhar a par e passo” as medidas prometidas.

Ao Observador, a deputada comunista Diana Ferreira recusa o “endeusamento”, “alargamento” e “promoção, como uma panaceia para todos os males” do teletrabalho para fragilizar os direitos dos trabalhadores, mostrando-se de acordo com as propostas para obrigar as empresas a pagar custos com água, luz ou internet ou com a regulação do direito a desligar fora do horário de trabalho, e prometendo “apresentar propostas que travem oportunismos”. Também há promessas para novas propostas sobre direitos laborais — a 25 de março o PCP apresentará uma para repor regras de cálculo nas indemnizações por despedimento, a somar-se às que já tinha apresentado – e, esclarece-se, sobre estas matérias extra-teletrabalho “não houve tratamento sobre as mesmas com o Governo até ao momento”.

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Pedro Nuno fala, mas “vale o que Costa quer”

É também esses sinais que o BE tem em conta para concluir que 1) o Governo não vai concretizar medidas mais à esquerda, nomeadamente na área do Trabalho 2) Costa continua a afastar-se e a mostrar uma atitude “hostil” em relação aos bloquistas, que mantêm a convicção de que a “disponibilidade para conversar” que o Governo refere é artificial. E é aqui que entra o fator Pedro Nuno Santos. No partido, a intervenção do ministro num evento virtual da Juventude Socialista foi seguida com interesse, mas também foi posta em perspetiva: o tempo, entendem (e lamentam alguns), ainda não é o de Pedro Nuno. Foram vários os bloquistas que estiveram atentos à declaração em que o ministro insistiu na necessidade de cooperar com a esquerda e de não agir como se o Governo tivesse maioria absoluta, pedindo que a geringonça não se resuma a um “parênteses” na história da democracia portuguesa.

Mais: se Pedro Nuno tem insistido, desde que em vésperas de presidenciais defendeu um apoio formal do PS à candidatura de Ana Gomes, que o caminho certo para o PS crescer será apostar numa polarização à esquerda para conquistar o centro, dias depois um artigo de Francisco Louçã no Expresso sublinhava pontos quase completamente coincidentes. “Há por isso um argumento razoável para propor uma estratégia alternativa, a da polarização com alianças à esquerda (…), em vez de esperar alívio pelas pontes ao centro, como o têm feito o primeiro-ministro e o presidente”. O fundador e ex-líder do Bloco sentenciava: “Ainda vai haver arrependidos da busca do centro como o Santo Graal, se bem que não saibamos se a estratégia alternativa de polarização à esquerda será suportada pela coerência de propostas, pela visibilidade de soluções, pelo apoio popular e pela decisão de protagonistas”.

No Bloco há quem acredite que seria mais fácil existir a tal polarização à esquerda se essa decisão dos protagonistas passasse por Pedro Nuno. Mas com pouca fé, uma vez que os bloquistas apostam que o tempo do ministro, apoiado por uma ala esquerda no PS fiel à experiência da geringonça, só deverá chegar mais perto de 2023, data de novo congresso (o próximo é já em julho) e de eleições legislativas. Até lá, Costa tem o trunfo da gestão dos tempos. “O apoio do PCP e do PAN ao Governo impedem Pedro Nuno de fazer a sua campanha à esquerda no PS. Agora, vale o que Costa quer”, resume ao Observador um dirigente. “O tempo está a correr a favor do Governo”.

Pedro Nuno alinha na política oficial do PS? “Não me parece”

As visões da esquerda sobre esse possível caminho futuro do PS também fizeram parte de uma edição especial da Vichyssoise, programa da Rádio Observador, em que se comentavam os anos do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, na semana passada. Enquanto Miguel Costa Matos, líder da JS (e associado à ala esquerda do partido), assegurava que o que Pedro Nuno descreveu não foi mais do que “a política oficial do PS”, José Soeiro, deputado e dirigente do Bloco, contrariava de imediato: “Não me parece. Não senti isso nas negociações em que participei, e estive em muitas. (…) Não é toda a gente do PS, evidentemente; acho que, desse ponto de vista, a intervenção de Pedro Nuno Santos contrasta com, por exemplo, o discurso que o PS teve durante a negociação e depois do Orçamento”. Mais: “O que ele sinalizou estabelece um contraste com a atitude do PS, típica do Carlos César, mas que não era típica da negociação da legislatura anterior”.

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Nesta conversa, também Miguel Tiago, ex-deputado do PCP, interveio para avisar a esquerda: “Se alimentamos a ideia de que dentro do PS há pessoas que querem levar o PS para a esquerda estamos a cair no jogo do PS, que é ter várias caras para criar vários pólos de atração para diversas sensibilidades também na esquerda. Temos de ter o cuidado de não enveredar pela falácia em que o PS nos quer encurralar, que é a ideia de que se votarmos no Manuel Alegre ou no Pedro Nuno Santos o PS vai ser de esquerda”.

Conclusão do lado dos comunistas? “O PCP nunca alimentou nenhuma ilusão sobre qualquer PS — o PCP viu uma oportunidade na geometria parlamentar em que o próprio PCP poderia ter mais peso nas decisões”. Não é o PS que muda, é o PCP que decide em que momento compensa, e traz avanços, viabilizar o Governo — e, em ano de autárquicas e de sondagens difíceis, aventam os partidos vizinhos, pode voltar a compensar.

Numa discussão que passa por perceber que caminhos percorrerá o PS no futuro, poderá ser relevante um segundo evento virtual que a JS voltou a organizar, uma semana depois e desta vez com Ana Catarina Mendes, um dos nomes sempre referidos como alternativa a Pedro Nuno no futuro do PS, como cabeça de cartaz. “A verdade é que neste último ano foi possível, com uma resposta socialista de esquerda — da esquerda moderada e democrática –, colocar o Estado social à prova e dar resposta nas várias dimensões”, avisou, destacando medidas como o pagamento a 100% dos salários em lay-off, proposta pelo PCP. O lembrete surgiu uma semana depois de Pedro Nuno ter pedido, no mesmo fórum, mais Estado… e mais cooperação com os vários vizinhos da esquerda.