O presidente da Câmara Municipal do Porto vai a julgamento no processo Selminho, no qual é acusado de favorecer a imobiliária da família, da qual também era sócio, em detrimento do município. Arrisca-se a perder o mandato e irá aguardar julgamento em liberdade.

Como começou o processo?

Em causa está uma procuração que Rui Moreira assinou em 2013, quando chegou ao município do Porto, indicando os representantes legais da câmara num processo judicial que opunha a empresa Selminho à autarquia, sendo uma das decisões que, para o MP, configura um eventual conflito de interesses.

Em julho de 2017, o Ministério Público mandou arquivar uma queixa da CDU contra Rui Moreira, acusando-o de prevaricação, considerando que o autarca não cometera qualquer irregularidade administrativa, mas em dezembro de 2020 o presidente da Câmara do Porto voltou a ser acusado do mesmo crime pelo MP.

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No centro da disputa está um terreno na escarpa da Arrábida, vendido por um casal que o registou por usucapião à imobiliária Selminho, em 2001, e que o tribunal considerou parte dele ser propriedade municipal, na sequência de uma ação movida pela autarquia em 2017.

A Selminho tinha a intenção de construir na escapa da Arrábida, numa propriedade de 2260 metros quadrados, um terreno com vista para o rio Douro comprado ao tal casal. Em junho de 2020, porém, uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça confirmou que parte da propriedade em causa é municipal, numa decisão já transitou em julgado.

Antes disso, em maio, o Supremo confirmou a decisão do Tribunal da Relação do Porto que, em outubro de 2019, considerou nula a escritura de venda do terreno na Arrábida feita pelo casal à Selminho. O acórdão da Relação considerou que não ficou provado que o terreno tenha sido adquirido pela família que o vendeu à Selminho, nem que alguém o pudesse reivindicar por usucapião.

No âmbito do Plano Diretor Municipal (PDM) em vigor desde 2006, a propriedade foi classificada como sendo não edificável, levando a imobiliária a avançar para tribunal contra a Câmara, por se ver, assim, impedida de ali construir. Em 2014, no primeiro mandato de Rui Moreira como presidente da autarquia, a Câmara fez um acordo com a Selminho, assumindo o compromisso de devolver a capacidade construtiva ao terreno no âmbito da atual revisão do PDM, ou recorrer a um tribunal arbitral para definir uma eventual indemnização à imobiliária.

Em julho de 2019, a Câmara do Porto foi alvo de buscas pela Polícia Judiciária, no âmbito do caso Selminho, tendo a Procuradoria-Geral da República confirmado à Lusa que decorreram no âmbito de um processo que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto.

Que suspeitas recaem sobre Rui Moreira?

O MP concluiu que, tendo tomado posse como presidente da autarquia em outubro de 2013, Moreira determinou que o município alterasse a posição jurídica e/ou urbanística em relação ao terreno.  Na tese da acusação, enquanto presidente do município, Rui Moreira agiu em seu benefício e da família, em prejuízo do município, no negócio dos terrenos da Arrábida.

A acusação sustenta que o presidente, em vez de atuar com “imparcialidade” e defender o “interesse público”, atuou “deliberadamente contra a lei, obrigando o município aos interesses da Selminho, com [a] única intenção de beneficiar a empresa de que o próprio arguido, seus irmãos e sua mãe eram sócios”. Isto, num conflito judicial que opunha há vários anos a câmara à empresa imobiliária, Selminho, que pretendia construir num terreno na escarpa da Arrábida.

“A única parte que ganhou com isto foi a Selminho. A Câmara [do Porto] não ganhou nada. O Dr. Rui Moreira atuou em benefício seu e da empresa da sua família e fê-lo contra a lei”, declarou o procurador Nuno Serdoura, no debate instrutório, no passado dia 29 de abril. O magistrado do MP questionou a tese de que “advogado incompetente” — Pedro Neves de Sousa  —, a quem Rui Moreira outorgou uma procuração, tenha decidido tudo sozinho, nomeadamente quanto ao acordo com a Selminho, potencialmente prejudicial para o município.

O MP lembrou que, anos antes, a Selminho podia ter pedido a reparação de danos por ter perdido capacidade construtiva dos terrenos na Arrábida. Contudo, só o fez após Rui Moreira ter assumido a liderança da Câmara do Porto, quando tomou posse em 23 de outubro de 2013.

O que disse a juíza?

A decisão instrutória, a cargo da Juíza de Instrução Criminal (JIC), Maria Antónia Ribeiro, foi conhecida esta terça-feira. “É solidamente previsível que, se submetido a julgamento, venha a ser aplicada ao arguido, em função da prova recolhida nos autos, uma sanção penal”, sustenta a JIC, acrescentando que Moreira, “enquanto autarca e no exercício dos seus poderes, atuou em clara violação da lei”, da qual tinha “plena consciência”.

Na fase de instrução “não foi produzida qualquer prova que pudesse abalar” a acusação, razão pela qual o autarca vai responder em julgamento por prevaricação (de titular de cargo político), em concurso aparente com um crime de abuso de poder, incorrendo ainda na perda de mandato.

O Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto afirma que o arguido “agiu com intenção direta de beneficiar os interesses da Selminho, [imobiliária] da qual também era sócio, em detrimento da CMP”, no litígio judicial que opunha o município à imobiliária, que pretendia construir um edifício de apartamentos num terreno na Calçada da Arrábida, no Porto.

“(…) Do conteúdo da prova produzida em inquérito, da análise, dúvidas não se nos suscitam, num juízo de prognose, que tal prova em julgamento conduziria com razoável e elevada probabilidade – ante o juízo de certeza e segurança que a apreciação da prova em julgamento impõe e exige – à condenação do arguido”, defende o TIC do Porto.

Para ao TIC do Porto, “o compromisso assumido pelo arguido [em 2014], enquanto representante do município, além de invadir as competências próprias da Assembleia Municipal, quanto à alteração da qualificação do solo do terreno, garante à empresa Selminho a reclamada pretensão edificatória que eram contrárias às disposições do Plano Diretor Municipal”.

Moreira assumiu a presidência da câmara em outubro de 2013 e a juíza questiona que “desde logo parece estranho, quando o mesmo, assim que inicia funções, pede os processos mais importantes. Perguntando-se como é possível desconhecer a existência de um processo em que uma das partes é precisamente uma empresa na qual tem interesse”.

“Um presidente da câmara que sabe da existência de um litígio entre o município que representa e uma empresa na qual tem interesses, ao ter dúvidas sobre a outorga de uma procuração [ao advogado Pedro Neves de Sousa], com poderes especiais e das suas consequências, não se satisfaz com uma informação superficial ‘entre gabinetes’. Por outro lado, a testemunha Azeredo Lopes [à data chefe de gabinete] referiu não ter suficientes conhecimentos jurídicos na matéria. Não se nos afigura plausível”, concluiu a JIC.

O que pode acontecer?

Rui Moreira vai agora a julgamento pelo crime de prevaricação, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, incorrendo ainda na perda de mandato. O crime de prevaricação é punido com uma pena de 2 a 8 anos de prisão.