A crise na fronteira de Ceuta, onde entraram ilegalmente cerca de oito mil marroquinos nos últimos dois dias (número que marca um recorde de entradas por dia), está a causar ondas de choque na política espanhola — o Vox já reclama a construção de um “muro intransponível” na fronteira — e na relação com Marrocos, assim como a gerar reações ao nível europeu, com a Comissão Europeia a recusar ser “chantageada” de países externos.

Esta quarta-feira, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, enfrentou pela primeira vez a oposição no Parlamento sobre o tema que tem agitado o país vizinho e que já motivou uma deslocação do próprio Sánchez a Ceuta, onde foi recebido com muitos protestos. Por isso, o primeiro-ministro aproveitou a sua intervenção no Parlamento, relatada pela imprensa espanhola, para anunciar desde logo que já foram “devolvidos” 4800 dos imigrantes ilegais que entraram esta semana em território espanhol, fazendo uma atualização dos números (4000) que tinham sido divulgados na terça-feira.

Diante da oposição, Sánchez defendeu-se das críticas que apontam ao Governo uma ação insuficiente de resposta em Ceuta, lembrando que o exército espanhol foi enviado para a fronteira — que é também uma fronteira europeia — e que as forças de segurança foram reforçadas naquela zona para poderem proceder às devoluções. Na madrugada desta quarta-feira, depois de na véspera terem circulado relatos de violência contra as forças de segurança, houve mais interceções de marroquinos que continuavam a entrar através de Ceuta e Melilla, ambos territórios espanhóis, mas também de migrantes que voltaram voluntariamente para trás.

Não foi, no entanto, por isso que Sánchez deixou de ser criticado pelos líderes do PP, do Vox ou do Ciudadanos. Em resposta às críticas de Pablo Casado (PP) sobre a estratégia do Governo, no Parlamento, o primeiro-ministro disparou acusações de “deslealdade”, colocando a questão como uma provocação de Marrocos a Espanha e questionando “de que lado está a oposição”.

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Pouco depois, e em declarações feitas a partir de Ceuta, o líder do Vox, Santiago Abascal, foi mais longe e pediu mesmo que se construa ali um “muro”, acusando Marrocos de utilizar “convenientemente” as suas crianças para comover a comunidade internacional.

Em declarações feitas à Telecinco, o líder do partido de extrema-direita considerou que em vez de um problema migratório, o que se passa em Ceuta é “uma autêntica invasão territorial planificada por Marrocos”. Soluções? Para Abascal, que acusa Marrocos de ter “lançado” ao mar “crianças para que aparecessem convenientemente nas televisões para sensbilizar a opinião internacional”, a resposta passa pela militarização das fronteiras espanholas e a construção de “um muro intransponível”.

Europa “não se deixará intimidar” e oferece ajuda a Espanha

Mas as reações não se limitaram à política interna espanhola. A nível europeu já chegam avisos, nomeadamente do vice-presidente da Comissão Europeia e responsável pela pasta das Migrações, Margaritis Schinas, que em entrevista à RNE esta quarta-feira deixou uma resposta a Marrocos: a Europa “não se deixará intimidar” nem “chantagear” por ninguém, disse, citado pelo “El Mundo”, oferecendo a Espanha “meios e recursos” para proteger a fronteira em Ceuta e Melilla.

Imagens mostram autoridades espanholas a salvar bebé e crianças em Ceuta

“A União Europeia é demasiado forte para ser vítima das táticas de Marrocos”, acrescentou, acusando o país de “instrumentalizar a imigração” neste caso e transmitindo que já houve contactos entre a Comissão e a ministra dos Assuntos Exteriores, União Europeia e Cooperação de Espanha, Arancha González Laya, para oferecer ajuda europeia.

Marrocos: “Preço por nos subestimar é muito alto”

Entretanto, o ministro dos Direitos Humanos de Marrocos, Mustafá Ramid, publicou um texto no Facebook que ajuda a perceber os motivos da crise, uma vez que recorda que o líder do movimento de independência do Sahara Ocidental Frente Polisário, Brahim Ghali, foi hospitalizado há dias em Espanha usando um nome falso. Perante as críticas de Marrocos, que se queixou por não ter sido consultado ou informado no processo, o Governo espanhol disse ter recebido Ghali, que alegadamente tem um cancro, por razões estritamente humanitárias — uma decisão que Marrocos disse na altura receber com “incompreensão e exasperação”.

O que se passa em Ceuta? Imagens mostram milhares de migrantes

Agora, Mustafá Ramid veio relacionar os dois casos, referindo no Facebook que Espanha “sabia que o preço por subestimar Marrocos é muito alto”. “O acolhimento por parte de Espanha do líder das milícias separatistas, sob uma identidade falsa, sem ter em conta as relações de boa vizinhança que requerem coordenação ou consulta, tendo pelo menos o cuidado de informar Marrocos, é um ato irresponsável e totalmente inaceitável”, defendeu, citado pela Europa Press, lamentando ainda que Espanha tenha “preferido a sua relação com a Frente Polisário e o seu mentor, a Argélia” e “sacrificado” as relações com Marrocos.

O Governo espanhol já veio responder a estas declarações, contrariando a perspetiva de Marrocos e assegurando que o acolhimento de Ghali se resumiu a um “gesto humanitário para com uma pessoa doente”, como disse Arancha González Laya. “Nunca vimos isto como uma agressão”.

Texto atualizado às 10h37 com declarações de Santiago Abascal.