A Câmara Municipal de Cascais, liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras, contratou um enfermeiro que não está inscrito na Ordem dos Enfermeiros (OE) para administrar vacinas num centro de vacinação contra a Covid-19 na freguesia de Alcabideche. Foi, aliás, esse mesmo enfermeiro — um cidadão brasileiro que não tem autorização para exercer a profissão em Portugal — que vacinou o próprio autarca no início desta semana, como mostram fotografias divulgadas por Carreiras na sua página oficial do Facebook.
O caso já chegou ao conhecimento da OE e da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), que inclusivamente já pediu à autarquia o afastamento do cidadão das funções de enfermagem que está a desempenhar naquele centro de vacinação contra a Covid-19.
Foram outros enfermeiros que trabalhavam no centro de vacinação de Alcabideche que deram o primeiro alerta, por não conhecerem o colega e terem percebido que não teria cédula profissional nem estaria inscrito na OE, condição vital para poder exercer a profissão no país. Isto mesmo foi confirmado ao Observador por uma fonte oficial do gabinete da bastonária da OE, Ana Rita Cavaco. A mesma fonte explicou que, depois de receber o alerta, a OE pesquisou o nome do enfermeiro em questão nas suas bases de dados e percebeu que aquele cidadão não se encontrava inscrito nem tentara fazê-lo antes.
“A OE, após ter sido alertada para esta situação por enfermeiros desse centro de vacinação, e depois de verificar que este cidadão não se encontra inscrito na OE em Portugal, solicitou a intervenção urgente da ARSLVT, uma vez que atenta a norma da DGS, os Centros de Vacinação estão sob a responsabilidade das equipas dos ACES e consequentemente das ARS”, explicou o gabinete de Ana Rita Cavaco ao Observador. “Pese embora existam parcerias entre autarquias e as ARS, a responsabilidade da coordenação destes Centros pertence sempre aos ACES e ARS.”
Numa comunicação enviada ao presidente da ARSLVT, Luís Pisco, a bastonária Ana Rita Cavaco pediu uma “intervenção urgente” e explicou que o trabalhador do centro de vacinação não só não está inscrito na Ordem dos Enfermeiros como também nunca se tentou inscrever. Aliás, segundo o relato enviado por Ana Rita Cavaco para a ARSLVT, o trabalhador em questão já havia sido rejeitado pela empresa Ocean Medical, uma empresa de formação de profissionais de saúde através da qual a autarquia contratou enfermeiros para o centro de vacinação — precisamente por não ter cédula profissional. Na sequência dessa recusa, a câmara municipal contratou o enfermeiro diretamente.
“A Câmara de Cascais pode fazer contratações para os centros de vacinação ao abrigo da parceria com a ARSLVT”, sublinha a OE. “Só pode é contratar enfermeiros.”
O Observador questionou a câmara municipal de Cascais e a ARSLVT sobre os contornos do caso.
A ARSLVT, autoridade regional de saúde, confirmou que, “tendo tomado conhecimento da existência de dúvidas relativamente ao profissional” em questão, “solicitou à Câmara Municipal de Cascais (entidade que contratou este profissional) que o mesmo não exerça funções de enfermeiro no Centro de Vacinação Covid-19 de Alcabideche”. Ainda assim, e mesmo perante várias insistências do Observador, a autoridade regional de saúde não esclareceu de que modo as várias entidades — autarquia e autoridades de saúde — se articularam na organização do centro de vacinação e na contratação dos enfermeiros que ali trabalham, deixando por clarificar os moldes em que o profissional foi contratado.
Já a câmara municipal de Cascais explicou ao Observador que “o enfermeiro foi contratado ao abrigo da legislação em vigor, nomeadamente o artigo 7º do Decreto nº 3-D/2021, de 29 de Janeiro, reforçado pelo art.10º nº2, alínea b), do Decreto nº6/2021 de 3 de abril”. Aliás, a autarquia sublinhou mesmo que “o enfermeiro fez prova de mais de cinco anos de experiência profissional” e que “a sua contratação foi validada pelo Conselho Clínico e de Saúde do ACES Cascais” — validação essa que já foi, como se percebe pela resposta da ARSLVT, contrariada por uma autoridade de saúde superior.
“A contratação do enfermeiro foi consumada só depois de a Câmara Municipal de Cascais ter esgotado todas as possibilidades de contratação de enfermeiros na base de dados da Ordem. A Câmara contratou enfermeiros da lista da Ordem nas condições exigidas — entrada imediata, 2 mil euros mensais e alojamento em unidade hoteleira — mas a verdade é que nunca houve quadros em número e disponibilidade suficiente para as exigências dos pavilhões de vacinação e centros de testagem de Cascais”, explica a autarquia.
“Convém não esquecer que, à data da contratação, o país estava numa situação de tremenda pressão para conseguir recursos que permitissem processos de testagem e vacinação rápida“, acrescenta a resposta da câmara. “O enfermeiro em causa é um excelente profissional, elogiado por colegas e utentes.”
Com efeito, a possibilidade de contratar, excecionalmente, profissionais de saúde estrangeiros sem inscrição na respetiva ordem profissional foi aprovada inicialmente no dia 29 de janeiro deste ano, no decreto do Governo que regulamentou o estado de emergência decretado pelo Presidente da República. Mas, mesmo nesse decreto, o Governo impôs um conjunto de apertadas condições: os contratos deviam ter a duração máxima de um ano, os enfermeiros tinham de ter pelo menos 1.800 horas de estudo em ensino clínico ou então cinco anos de experiência profissional. Para se manterem contratados depois desse ano, precisariam de inscrição na OE. Além disso, o decreto é claro: só os “estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do Serviço Nacional de Saúde” podiam contratar estes profissionais, que teriam sempre de provar ser titulares de graus académicos equiparáveis aos exigidos em Portugal. A medida excecional, adotada ao abrigo do estado de emergência, já não se encontra em vigor.
A própria bastonária da OE, Ana Rita Cavaco, lembrou esta possibilidade no documento que enviou ao presidente da ARSLVT, sublinhando que a autarquia não poderia alegar que contratou o profissional ao abrigo daquele decreto, uma vez que se destinava exclusivamente a unidades de saúde do SNS e teria de ser comprovado pela apresentação do diploma de formação — que, segundo Ana Rita Cavaco, não foi apresentado.
Além disso, a contratação de um enfermeiro sem cédula profissional levanta graves problemas, alerta a OE. “Não tendo cédula profissional emitida pela Ordem dos Enfermeiros, também não tem seguro de responsabilidade civil (obrigatório para prestação de cuidados de Enfermagem em Portugal) nem perfil de registos de Enfermagem, porque o mesmo só pode ser criado com o número de cédula profissional”, esclarece o gabinete de Ana Rita Cavaco ao Observador.
“Sendo um cidadão brasileiro, esclarece-se que o Brasil tem dois níveis de formação, os enfermeiros e os técnicos de enfermagem, que são auxiliares, não são enfermeiros. Estes técnicos não podem inscrever-se na Ordem porque não são enfermeiros e não cumprem os requisitos legais de formação. Em diversos processos de atribuição de título de enfermeiro por parte da Ordem, detectámos várias vezes estrangeiros com diplomas falsos. Poderemos ou não estar perante uma situação destas, dado que ninguém viu o diploma deste senhor. Poderá até ser enfermeiro, mas não estando inscrito na OE não pode exercer em Portugal”, acrescenta ainda a OE.
O documento enviado por Ana Rita Cavaco à ARSLVT, que relata conversas de outros enfermeiros com o profissional em questão, revela algumas das justificações que terão sido utilizadas para a contratação. Num dos momentos, o profissional terá dito à empresa Ocean Medical que tinha feito a sua inscrição da OE, mas ainda não tinha cédula profissional — e por não a ter foi recusado. Já no caso da autarquia, a justificação terá sido a de que a emissão do diploma no Brasil custaria 600 euros, motivo pelo qual o enfermeiro não o tinha consigo.