Título: Um Amor
Autora: Sara Mesa
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 152
Preço: 17,50€
Um Amor conta a história de Nat, uma jovem tradutora que decide exilar-se em La Escapa em parte por motivos financeiros em parte para fugir à sua vida anterior. Em La Escapa, a protagonista terá de enfrentar um senhorio abusivo e violento; Píter, um homem prestável cujas intenções nunca são muito claras e ainda um solitário a que por algum motivo insondável todos chamam de alemão, com quem virá a viver o que se poderia imprecisamente designar de um romance.
O nono romance de Sara Mesa tem desde logo imensas coisas admiráveis: é bem construído, as personagens são desenhadas com mestria e tem frases curtas e imagens claras evocativas de Faulkner, como se diz aliás na contracapa (que lamentavelmente contém uma sinopse demasiado exaustiva). Além disso, Sara Mesa nunca tira conclusões demasiado cedo. Pelo contrário, apesar de se tratar de um livro relativamente pequeno, a escritora procura construir uma perspectiva com tempo. Essa serenidade narrativa é, aliás, visível tanto da parte de quem conta a história de Pat, uma vez que a narradora procura observar tudo sem assumir um ponto de vista dogmático ou normativo, como da parte da própria protagonista, que vai sofrendo coisas traumáticas, facilmente resumíveis a uma palavra (como por exemplo violação, exclusão, lenocínio ou machismo), mas para as quais procura sempre uma descrição menos simples e mais precisa. Nat não é sequer capaz de compreender inequivocamente a orientação sexual do seu melhor amigo em La Escapa, Píter (sendo a palavra “amigo” uma simplificação abusiva da relação entre ambos, não sendo por isso nunca referida ao longo do romance).
Mesmo o título é extraordinário. A indefinição do determinante permite resumir bem o que se passa ao longo do romance: Sara Mesa procura contar a história de um amor. Não generaliza, não romantiza, não tenta sequer torná-lo num caso exemplar do que quer que seja. Conta a história de um amor e é tudo. As conclusões ficam para quem estiver disposto a violentar a história de forma a encaixá-la numa qualquer visão do mundo.
Assim, a perspectiva que esperaríamos de uma história tão silenciosamente violenta como esta seria a de Píter, sempre pronto a apresentar uma visão forte e inflexível de tudo o que o rodeia: do cão de Nat, do alemão, do senhorio. No entanto, se a perspectiva de Píter serve para uns posts incrivelmente virais e corrosivos a dizer umas verdades incómodas nas redes sociais, daria péssimos romances, por fazer da vida um objecto apreensível em duzentos e oitenta caracteres ou menos.
Nesse sentido, uma das frases decisivas do romance é dita perto do início, quando Nat descreve pela primeira vez a Píter os motivos que a levaram a despedir-se do seu último trabalho, acrescentando a narradora que “tudo o que contou é verdade; e, contudo, devido à maneira como o contou – a selecção de palavras, o ritmo, as pausas e rodeios – cobriu-se de um halo de falsidade que lhe repugna.” Na primeira interacção entre o alemão e a protagonista, este oferece-se para trocar as telhas da casa alugada por Nat em troca de sexo. O que se segue tem muito pouco a ver com a crua realidade dos factos e muito mais com crítica literária e interpretação de palavras. A busca de sentido da história é, acima de tudo, a busca da palavra certa para a contar, é um exercício de amor pela linguagem. Seria fácil ver o alemão como um predador sexual, um homem indecente a procurar explorar as fragilidades de uma mulher isolada num meio que não é o seu. No entanto, aceitar imediata e acriticamente essa visão seria desprezar uma série de manifestações de cuidado e, se não fosse tão grotesco usar esta palavra neste contexto, de apreço por Nat quando esta troca finalmente se concretiza.
Grande parte da dor sentida por Nat nesse momento advém precisamente do facto de perceber que para os outros, para os observadores isentos, a cena teria uma interpretação demasiado simplista. Nat sabe que os outros qualificarão o seu comportamento sem rodeios como prostituição, sem encontrarem “zonas intermédias entre o prazer e a repulsa», sem contemplações. Nat, talvez por vício profissional, recusar-se-á a definir a história «seja mediante que palavra for”, uma vez que parece sempre consciente de que as palavras fortes que usamos já quase sem pensar tendem a fazer do mundo uma coisa demasiado óbvia e evidente. Parece compreender que só poderá exorcizar a sua história, o seu amor e a sua própria vida se encontrar os termos certos que lhe permitam fazer sentido de tudo o que aconteceu.
No entanto, em grande medida por os tradutores serem no final de contas pessoas como todas as outras, também Nat falha inúmeras descrições, por se deixar levar pela sua vontade de moldar a realidade à narrativa que preparou para ela: é assim, por exemplo, que interpreta um dia de chuva, idealizando-o como um marco de mudança quando se tratava apenas um “típico temporal de Agosto”.
Ao longo de Um Amor é sempre com isto que nos confrontamos: com uma tentativa quase desesperada de eliminar descrições habituais e canónicas para que se consiga ver melhor as coisas. Contudo, é bastante peculiar no romance que o evidente talento interpretativo de Nat esbarre numa parede quando procura fazer sentido do seu objecto de desejo, o alemão, uma vez que é sempre “impossível chegar ao que há por detrás das suas pálpebras”. Lamentavelmente, é assim que a vida nos trata.
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