A análise das águas residuais permitiu às autoridades portuguesas detetar a presença de várias mutações do coronavírus no território nacional dias ou semanas antes de serem clinicamente diagnosticadas em pessoas infetadas, de acordo com os resultados preliminares do projeto Covidetect, apresentados esta quarta-feira pela Águas de Portugal.
O projeto Covidetect foi lançado em março de 2020, o mês em que a pandemia da Covid-19 eclodiu em Portugal, por um consórcio liderado pela Águas de Portugal que inclui a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o Instituto Superior Técnico, a Direção-Geral da Saúde e a Agência Portuguesa do Ambiente, com um objetivo bem definido: o de perceber se era possível, através da análise das águas do esgoto, perceber antecipadamente a difusão do coronavírus em Portugal.
As águas residuais representam um manancial de informação sobre os hábitos dos cidadãos. “Podíamos saber a vida de todos a analisar os nossos esgotos. Não queremos, não se preocupem“, ironizou o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, durante a sessão de apresentação dos resultados preliminares do projeto, esta quarta-feira em Lisboa.
“É um caudal rico em nutrientes e em informação”, que permite “analisar os hábitos das populações, o consumo de fármacos ou estupefacientes e a mudança de horários de consumo“, especificou a presidente da Águas do Tejo Atlântico, Ana Silveira. Na génese do projeto, lançado nos primeiros dias da pandemia, está um facto científico fundamental: uma pessoa infetada com o coronavírus vai excretar material genético do vírus através das fezes e urina ainda antes de ter sintomas (ou mesmo que não chegue a tê-los). Ou seja, analisando a concentração de vírus nas várias ETARs portuguesas, é possível ter um retrato da presença da pandemia em determinada região do país ainda antes de ela se manifestar no número de casos.
Ao longo de um ano, um conjunto de cientistas recolheu centenas de amostras de águas residuais e analisou-as de modo a desenvolver uma metodologia de deteção do SARS-CoV-2, que depois foi usada para traçar um retrato da pandemia através dos esgotos. Os cientistas fizeram uma monitorização contínua de um conjunto de ETARs portuguesas, comparando a presença de vírus com a curva epidemiológica da região, e aprimoraram o método para conseguir detetar a presença de variantes.
Após um ano de estudos, as conclusões são promissoras: a presença de vírus nas águas residuais acompanhou o número de casos no país e foi possível identificar sequências de variantes com interesse clínico com uma antecedência significativa, ou, seja, antes de o primeiro caso ser confirmado através de um teste laboratorial. Esta antecedência foi de alguns dias para algumas variantes e de algumas semanas para outras.
Fica clara a “viabilidade da vigilância precoce da monitorização da pandemia através da monitorização das águas residuais“, explicou o vice-presidente da AdP Valor, Nuno Brôco, que coordenou o consórcio. “Portugal tem hoje um conhecimento que nos permite estar bem posicionados”, acrescentou.
Agora que a ciência concluiu que é possível antecipar a evolução da pandemia através das águas residuais, o projeto vai seguir para a próxima fase: a implementação de um sistema de notificação em tempo real às autoridades de saúde.
“Essa é a parte que ainda não está totalmente pronta”, explica ao Observador o investigador Ricardo Santos, do Instituto Superior Técnico, um dos cientistas envolvidos na análise das amostras. Ainda assim, segundo a investigadora Sílvia Monteiro, os autores do estudo estiveram “sempre em parceria com as autoridades” ao longo do projeto, o que significa que os sinais preliminares da presença das variantes foram comunicados às autoridades de saúde.
Uma das variantes mais preocupantes dos últimos meses foi a variante L452R, uma mutação “prima” da variante californiana, sobre a qual o Observador escreveu longamente em fevereiro deste ano. De acordo com o gráfico exibido esta quinta-feira pelos autores do projeto Covidetect, a mutação foi detetada pela primeira vez nas águas residuais no dia 28 de outubro do ano passado, mas o primeiro caso foi diagnosticado clinicamente a 14 de novembro.
Os investigadores do Instituto Superior Técnico também usaram a nova metodologia em amostras laboratoriais mais antigas, para tentar perceber se o coronavírus teria chegado a Portugal antes da deteção dos primeiros casos, em março de 2020. “Nós tínhamos algumas amostras do final de 2019, até abril de 2019. Nas nossas amostras, não detetámos SARS-CoV-2. No entanto, há um estudo da Universidade de Barcelona no qual eles já conseguiram detetar amostras de SARS-CoV-2 nas águas residuais em março de 2019, e associaram isso a uma conferência tecnológica que lá aconteceu”, explicou Sílvia Monteiro ao Observador. “Em Portugal, só detetámos a partir de março de 2020.”
O estudo permitiu ainda perceber que, apesar de a matéria viral se manter nas águas residuais, essas águas não têm capacidade de infetar humanos, uma vez que esse vírus se encontra em degradação.
O projeto Covidetect vai agora entrar na fase de implementação de um sistema de alerta às autoridades que será útil nesta pandemia, mas sobretudo deixará uma ferramenta pronta para próximas emergências sanitárias, explicou a ministra da Saúde, Marta Temido, na sessão desta quinta-feira.
“A disseminação de doenças transmissíveis à escala global sempre foi uma realidade. Os sistemas científicos e a ciência sempre encontraram nos momentos destes grandes confrontos oportunidades de robustecimento e prova pública da sua valia. Este projeto em concreto com a oportunidade que poderá vir a trazer de um sistema de notificação em tempo real tem um valor enorme e incalculável“, disse Marta Temido.
“É numa perspetiva muito utilitária e prática que o Ministério da Saúde encara o resultado deste trabalho, no sentido de aspirar a utilizá-lo a combater melhor esta pandemia e o que possam ser novas emergências e ameaças à saúde”, acrescentou. “Estamos num intervalo entre o que foi uma atividade pandémica muito forte e a esperança no processo de vacinação. Mas um intervalo que não nos pode fazer descansar e baixar a guarda.”
Segundo Ricardo Santos, que falou ao Observador a partir dos laboratórios do IST, o modelo desenvolvido é suficientemente flexível para ser usado em todo o tipo de epidemias.