Ainda não é uma análise definitiva mas, para já, Ivo Rosa está a salvo de um inquérito disciplinar do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Existia a suspeita de que o juiz de instrução teria reapreciado na decisão instrutória da Operação Marquês matérias que já tinham sido decididas por dois tribunais superiores (a Relação de Lisboa e do Porto) — o que configuraria uma violação do caso julgado — mas o órgão de gestão dos juízes não encontrou indícios suficientes para determinar a abertura de um inquérito disciplinar formal.
Numa declaração ao Observador, José António Lameira, vice-presidente do CSM, confirmou que foi analisada uma segunda situação de foro disciplinar — até agora desconhecida — que partiu de um “expediente” enviado pelo Ministério Público (MP) contra o juiz Ivo Rosa. Sendo que aqui já houve uma decisão definitiva por parte do Conselho: foi “arquivado por se tratar de matéria jurisdicional”, afirmou o conselheiro.
Conselho desmente “qualquer queixa” de desembargadores de Lisboa e do Porto
Tal como o Observador noticiou em primeira mão em maio, o vice-presidente José António Lameira solicitou ao Tribunal da Relação de Lisboa logo em abril todos os recursos do processo que tem José Sócrates como principal arguido para que o CSM analisasse os mesmos e cruzasse o respetivo conteúdo com todas as decisões tomadas por Ivo Rosa.
Entre recursos propriamente ditos, reclamações e recusa e escusa de juízes, o CSM analisou 60 acórdãos da Relação de Lisboa. Sendo que, de acordo com uma contabilidade feita pelo Observador, este tribunal superior terá tomado 67 decisões nos autos da Operação Marquês.
O Observador noticiou no início de maio que tal se devia a várias comunicações (queixas informais) que diversos desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa terão feito chegar ao Conselho, alertando para a alegada violação do caso julgado. Há mesmo um caso em que o juiz Ivo Rosa terá declarado a “nulidade insanável” de um despacho proferido por uma desembargadora da Relação do Porto. Rosa invocava que existia uma alegada “violação das regras de competência material (…), para além do vício de falta de fundamentação”.
O conselheiro José António Lameira desmente que tenha sido feita “qualquer queixa apresentada por senhores desembargadores de Lisboa ou do Porto”, logo a análise que foi ordenada aos recursos da Relação de Lisboa e o cruzamento dessa informação com a decisão instrutória da Operação Marquês partiu do próprio Conselho.
E por que razão a apreciação do CSM é preliminar — e não é definitiva? Por uma razão simples: porque a decisão instrutória de Ivo Rosa vai ser analisada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do recurso do MP sobre o seu despacho de não pronúncia. Se os desembargadores que serão sorteados entenderem que há fundamento para as suspeitas de violação do caso julgado, aí o órgão disciplinar dos juízes poderá voltar a analisar esta matéria.
Ivo Rosa devolveu 26,5 milhões de euros a arguidos antes do trânsito em julgado
De acordo com José António Lameira, o “único expediente que recentemente deu entrada (…) relativo ao processo Operação Marquês foi enviado pelo Ministério Público (MP), tendo sido arquivado por se tratar de matéria jurisdicional, aliás objeto de recurso por parte do MP, como é já do conhecimento público”, afirmou ao Observador.
O vice-presidente do CSM não quis especificar o conteúdo do “expediente do MP”. Mas, ao que o Observador apurou, o MP comunicou ao órgão disciplinar dos juízes um conjunto de indícios que, no entender dos procuradores, podem constituir ilícitos disciplinares ou, no mínimo, matéria que deve ter repercussões ao nível da avaliação de mérito do juiz Ivo Rosa — que foi avaliado como “muito bom”, a pontuação máxima, na última inspeção do CSM.
Está em causa, nomeadamente, o facto de o juiz Ivo Rosa ter decidido levantar o arresto de contas bancárias pertencentes a Carlos Santos Silva, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e outros arguidos que continham cerca de 26,5 milhões de euros em dinheiro e em títulos mobiliários. Foram igualmente levantados os arrestos sobre diversos imóveis valiosos, como a famosa casa de Paris de Santos Silva (que, na tese do MP, pertence a José Sócrates) e o monte das Margaridas no Alentejo (propriedade de Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates).
Apenas Zeinal Bava recebeu a ordem do juiz Ivo Rosa de entregar — como o próprio Bava se propunha fazer, refira-se — 6,7 milhões de euros à massa falida de uma das holdings do Grupo Espírito Santo no Luxemburgo.
O MP contesta o facto de o juiz ter tomado a decisão sem que a decisão instrutória tenha transitado em julgado e quando o procurador Rosário Teixeira informou imediatamente a seguir à leitura de 9 de abril que iria interpor recurso. Ou seja, e de acordo com o MP, Ivo Rosa terá transformado a sua decisão num ato irrecorrível — o que faz com que tenha sido cometido uma alegada ilegalidade.
Com a comunicação que fizeram, os procuradores queriam que o CSM tomasse uma de duas decisões: ou concordava que estava a causa uma alegada violação deliberada de Ivo Rosa, logo havia matéria disciplinar para o Conselho atuar; ou concordava que teria ocorrido uma violação de mérito, logo teriam de existir consequências a nível da classificação do juiz Ivo Rosa.
Como já referido, o CSM concluiu que se tratava de uma “matéria jurisdicional” — ou seja, uma decisão judicial que não pode ser utilizada disciplinarmente contra o juiz.
Com a decisão de Ivo Rosa de levantar os arrestos com efeitos imediatos, os arguidos passaram a dispor dos bens, fundos e valores mobiliários e poderão livremente transmiti-los ou vendê-los a quem quiserem. O Estado deixou assim de ter a garantia de que terá bens do arguidos ao seu dispor para financiar o pagamento de eventuais indemnizações — nomeadamente a nível fiscal — às quais Santos Silva, Granadeiro e Bava venham a ser condenados. Isto, claro, se a Relação de Lisboa os pronunciar para julgamento pelos crimes imputados pelo MP na Operação Marquês.
Esta é uma prática comum do juiz Ivo Rosa que já levou o Tribunal da Relação de Lisboa a censurá-lo por diversas vezes em diferentes autos, anulando as suas decisões de levantamento de arresto. O problema é que, quando o MP voltou a tentar promover os mesmos arrestos que tinham sido levantados por Rosa, os bens imóveis já tinham sido vendidos ou os fundos monetários e mobiliários já tinham sido transmitidos a terceiros.
Por exemplo, Ivo Rosa decidiu anular em novembro de 2018 uma caução de 300 mil euros que Armando Vara tinha depositado sob a forma de ónus sobre um imóvel em Paço de Arcos à ordem dos autos da Operação Marquês. Em janeiro de 2019, o MP requereu o depósito de uma nova caução de 500 mil euros — o que Rosa recusou, tendo o procurador Rosário Teixeira recorrido para a Relação de Lisboa. Entretanto, Vara prometeu vender o referido imóvel por 1,7 milhões de euros.
Resultado: a Relação de Lisboa ordenou a Ivo Rosa que determinasse o depósito da caução de 500 mil euros requerida pelo MP. Porquê? Porque quando anulou a caução original de 300 mil euros em novembro de 2018, Rosa esqueceu-se que a Relação de Lisboa já tinha confirmado essa mesma caução a 1 de março de 2018 a expensas de um recurso da defesa de Armando Vara. Logo, não havendo “novas circunstâncias de facto e de direito”, lê-se no acórdão que o Observador noticiou a 24 de abril de 2019, a jurisprudência fixada sobre esta matéria não permite a um juiz de primeira instância mudar uma decisão de um tribunal superior quando não há factos novos que o justifiquem.
Relação de Lisboa ordena que Ivo Rosa reponha caução a Armando Vara