Diversos juízes desembargadores comunicaram ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) suspeitas de ilícito disciplinar por parte do juiz Ivo Rosa devido a decisões que tomou no âmbito da decisão instrutória da Operação Marquês. Estão em causa decisões dos tribunais da Relação de Lisboa e do Porto que terão sido reapreciadas e que poderão constituir uma violação do caso julgado por parte de Ivo Rosa.

A violação do caso julgado significa que o juiz titular da fase de instrução da Operação Marquês terá analisado matérias que já tinham sido encerradas pelos tribunais superiores, no caso o da Relação. Sendo que, no caso do Tribunal da Relação do Porto, Ivo Rosa declarou mesmo a “nulidade insanável” de um despacho proferido por uma desembargadora por alegada “violação das regras de competência material (…), para além do vício de falta de fundamentação”.

Isto é, um juiz de direito (categoria base da magistratura judicial) declarou a nulidade insanável de uma decisão de uma desembargadora (segunda categoria da magistratura judicial).

Se se confirmarem as suspeitas, Ivo Rosa pode ser alvo de uma averiguação ou até mesmo de um inquérito disciplinar por parte do órgão de gestão dos juízes. “Está em causa um princípio sagrado do Direito: observar e cumprir decisões dos tribunais superiores”, afirma uma fonte próxima do processo.

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Para já, o CSM solicitou à Relação de Lisboa o envio de todos os recursos que aquele tribunal superior decidiu sobre a Operação Marquês. O mesmo tipo de pesquisa pode vir a ser feita na Relação do Porto.

Contactada pelo Observador, fonte oficial do CSM assegura que não foi aberta “qualquer averiguação” ou “inquérito disciplinar” e nem “abriu qualquer inspeção ao Sr. Juiz Ivo Rosa na sequência da decisão instrutória do designado processo Marquês”. O Observador confrontou o CSM com as comunicações recebidas por diversos desembargadores a propósito das suspeitas de caso julgado, mas fonte oficial nada disse sobre essa matéria.

Na sequência desta resposta do CSM, o Observador reconfirmou as informações sobre o envio de várias comunicações de diversos desembargadores e confirmou que a matéria está a ser analisada pelo órgão de gestão e disciplinar da magistratura judicial.

Ivo Rosa declarou “nulidade insanável” de um despacho de uma desembargadora por “falta de competência absoluta”

Um desses casos está relacionado com uma nulidade invocada pela defesa de Armando Vara. De acordo com os argumentos apresentados pelo advogado Tiago Rodrigues Bastos, a transmissão para os autos da Operação Marquês das escutas telefónicas realizadas com o seu cliente no âmbito do processo Face Oculta teriam violado as regras processuais penais.

O problema, segundo Ivo Rosa, é que quando o requerimento do Ministério Público foi emitido, em 2017, os autos do Face Oculta já estavam em fase de recurso devido a condenações pesadas decretadas pela primeira instância. Logo, foi a desembargadora relatora do acórdão da Relação do Porto quem teve de tomar a decisão sobre o requerimento do Ministério Público apresentado naquele momento. A respetiva promoção do Ministério Público deveria ter sido apreciada no âmbito do “tribunal de primeira instância, dado que não incumbe na competência dos tribunais da Relação praticar actos jurisdicionais relativos a inquérito a correr em tribunal de primeira instância”, escreve o juiz Ivo Rosa.

Ivo Rosa considera assim que a decisão da desembargadora padece de “nulidade insanável” por “violação das regras de competência material.” Mais: o juiz diz mesmo que o despacho que autorizou a transmissão das escutas contém um “vício de falta de fundamentação (…)”. Rosa conclui que a desembargadora tomou uma decisão com “falta de competência absoluta (matéria e hierarquia)”.

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Do ponto de vista prático, um juiz de direito (Ivo Rosa) não só reapreciou sobre uma matéria que já tinha sido decidida por um juiz com uma categoria superior à sua, como também fez mais do que isso: declarou a nulidade insanável de um despacho de um tribunal superior — o que pode colocar em causa a competência hierárquica dos tribunais.

O juiz chegou a acusar implicitamente a desembargadora do Porto de promover a “intromissão na vida privada” de Armando Vara, ex-vice-presidente do BCP, pois esta é a razão material que Ivo Rosa invoca para declarar nulos os despachos do seu colega Carlos Alexandre que aceitaram a transmissão aos autos da Operação Marquês de diversas escutas telefónicas de Vara realizadas no âmbito do processo Face Oculta — autos estes que levaram à condenação do ex-ministro de António Guterres por dois crimes de tráfico de influência e a uma pena de cinco anos de prisão que está a cumprir no Estabelecimento Prisional de Évora.

“Estou estupefacto. Um juiz de direito não pode declarar uma nulidade de um despacho de um tribunal superior. Isso vai contra todas as regras”, foi a posição transmitida ao Observador por diversos magistrados de diferentes tribunais superiores.

Resta saber o que vai fazer o Conselho Superior da Magistratura quando concluir a sua análise às comunicações recebidas.

Texto alterado às 9h08m de 7 de maio, clarificando que o juiz Ivo Rosa declarou a nulidade insanável de um despacho do Tribunal da Relação do Porto