Como foi o vosso março de 2020? Também começaram lançados, convictos de que era desta que iam aprender a falar italiano online, fazer ioga na varanda ao nascer do sol ou colocar em dia todos os filmes do Kurosawa? E algures também deram por vocês sem trocar o mesmo pijama do Pluto há três dias, oscilando entre ataques de choro, ataques ao frigorífico e uma incapacidade geral em se concentrarem no que for? E em janeiro de 2021, quando repetiram a dose, talvez com uma corrida ao supermercado para ainda apanharem whisky antes da proibição das oito da noite? Quê, já nem sabem o que se passou em que mês? Então vão sentir-se em casa em “Inside”, o novo especial de Bo Burnham para a Netflix. Entrem, tirem essa pilha de roupa suja dessa cadeira e sentem-se. Aqui, ninguém julga ninguém.
Lançado no fim de maio e apresentado como um “especial de comédia”, reduto geralmente dos espectáculos de stand up, “Inside” é ao mesmo tempo caótico e relacionável. É simultaneamente empático e desconfortável. Porque se de confusão foi feita a nossa pandemia, nem faria sentido de outra forma. Gravado pelo próprio Bo num certeiro contexto de solidão, sem qualquer equipa ou público, assistimos à passagem de vários dias fechados em casa. Quantos? Não sabemos (o próprio diz no início que não sabe de quanto tempo de gravação vai precisar), mas sentimos que passámos meses trancados com ele em casa. Num especial que vai sendo cada vez mais negro, despenteado, confuso e por vezes letárgico, há mood swings, discrepâncias de tom e até de formato. Ficamos com hora e meia de colagem de géneros, da música ao sketch passando para interpelações diretas para a câmara. É metodicamente desarrumado.
Os rasgados louvores que “Inside” tem recebido, do público e da crítica, não só elevam Bo Burnham a um patamar potencialmente acima do resto da sua geração como podem mesmo marcar uma mudança do paradigma do que é, afinal, o stand up. Ao contrário de outras demonstrações artísticas, o stand up e os seus intervenientes são muitas vezes teimosos e sisudos no que diz respeito ao formato. Claro que já existiram pedradas no charco (foi, de certo modo, o que aconteceu com “Nanette” de Hannah Gadsby ou com “3 Mics” de Neal Brennan, ambos disponíveis na Netflix), mas este é mais uma performance artística e mais radical no modo como abandona os clichés e muletas habituais do género. Nunca houve um especial de stand up assim e, com esta crueza resultante de uma clara fadiga pandémica, nunca mais haverá.
A palavra mais usada para descrever “Inside” tem sido “claustrofóbico”. O primeiro e mais óbvio motivo é estarmos trancados com Burnham naquele quarto, claro. Mas há também a porta trancada de uma saúde mental fechada sobre si própria, num certo abismo repleto de pés em falso. Estamos dentro de casa sem poder sair, mas também dentro de nós próprios sem escape. E Bo Burnham sabe bem do que fala, já que o próprio lida com ataques de pânico que, desde 2015, minam a sua relação com o palco e com digressões. Há uma angústia mas também um alívio em fazer aquilo sem público.
O comediante, tido cada vez mais como um artista na plena aceção do termo, começou com essa profissão non grata junto de alguma intelectualidade: youtuber. Começou a dar nas vistas aos 16 anos com os seus vídeos amadores de canções humorísticas, que já aí mostram sem brincadeiras que é um letrista como poucos. Mas é exatamente esse passado de youtuber que torna “Inside” nesta joia. Perceber tão bem o mundo digital, no qual todos habitámos mais ou menos à força no passado ano e meio, foi fulcral para o sucesso do tom. Das agruras de fazer um facetime com a nossa mãe ao gozo aos vídeos de react ou de gaming em direto, Burnham oscila entre o humor de observação certeiro mas superficial e o murro de gancho sobre o que mostramos ou encapotamos quando estamos online. Há também metáforas escondidas com o rabo de fora: o tal vídeo de react torna-se numa matrioska interminável de reacts ao react que mimetiza os dias todos iguais do confinamento.
Outra prova do profundo conhecimento da linguagem própria de 2021 é o facto de “Inside” estar repleto dos chamados Easter Eggs (segredos geralmente humorísticos escondidos em músicas, filmes, sites, jogos, etc). Exemplos: durante a canção “Sexting” o ar condicionado está nos 69 graus fahrenheit; e Bo faz 30 anos exatamente a meio do espectáculo (aos 43:49).
Muito tem sido feito em termos de ficção e entretenimento sobre Covid, especialmente nos campeonatos do humor e do registo confessional. Mas esta talvez seja a primeira obra-prima dessa época e das raras a ir superar o teste do tempo e permanecer como um documento deste período histórico. Não é uma moda de visionamento em isolamento, como foram “Tiger King” ou “Bridgerton”. Nunca chama a pandemia pelo nome, mas é mais sobre a pandemia que outras tentativas descaradas e apressadas. E, principalmente, nunca tenta ser moralista com o espectador.
As músicas de “Inside” ganharam entretanto vida própria, tendo sido lançadas no passado dia 10 como álbum em plataformas como o Spotify. A canção que mais se aproxima de uma espécie de single é “Welcome To The Internet”, talvez a mais certeira descrição da nossa relação com a internet alguma vez feita:
Vê um homem a ser decapitado
Ofende-te, consulta um psiquiatra
Mostra-nos fotos dos teus filhos
Diz-nos todos os pensamentos que pensas
Começa um boato, compra uma vassoura
Ou manda uma ameaça de morte a um boomer
Ou manda uma mensagem a uma rapariga e engata-a
Faz um zoom ou encontra um tumor
Aqui tens uma opção de pequeno-almoço saudável
Devias matar a tua mãe
É por isto que as mulheres não te fornicam
É assim que podes fazer uma bomba
Que Power Ranger és tu?
Faz este teste maluco
O Obama mandou imigrantes para vacinarem os teus filhos
Posso interessar-te em tudo
O tempo todo?
Um bocadinho de tudo
O tempo todo
A apatia é uma tragédia
E o aborrecimento um crime
Qualquer coisa e todas as coisas
O tempo todo.
“A apatia é uma tragédia”. Se quiserem fazer uma tatuagem in memoriam desta pandemia, já têm o que gravar no lombo.