Pelo menos 16 casais de pessoas do mesmo sexo conseguiram adotar uma criança desde que a lei foi alterada há cinco anos, como aconteceu com Mário e Flávio, que começaram “a maior e melhor aventura” das suas vidas.

Em entrevista à Lusa, Mário Lopes, 33 anos, contou que o seu caso foi um pouco atípico porque, embora soubessem que gostavam de constituir família e serem pais, esse sonho não tinha um prazo.

Tudo começou em 2019, quando o João, um menino institucionalizado de quase 2 anos, foi internado no Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa, sendo hospitalizado no serviço onde Mário trabalha como enfermeiro.

“Criou-se um laço muito forte entre mim e o João e começou a surgir a hipótese e comecei a falar com o Flávio, que é o meu namorado, sobre a possibilidade de irmos para a frente com o processo de adoção”, contou Mário, recordando que nessa altura ainda não tinha sido decretada a adotabilidade da criança por parte de um tribunal, apesar de não ter família biológica que cuidasse dele.

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Ponderaram os riscos, tendo em conta que o prognóstico do João “não era muito bom”, mas “tornou-se evidente” que tinham de ir “para a frente com isto” e que o João “tinha direito a ter uma família, independentemente do tempo [de vida] que tivesse”, e entregaram o processo para adoção logo nesse ano.

“A adaptação foi sempre muito boa, foi quase como se nos conhecêssemos desde sempre. Eu costumo dizer que tem sido a maior e melhor aventura da minha vida”, descreveu Mário.

Adiantou que não sabia como funcionavam os processos de adoção ou mesmo se o facto de ser homossexual e ter uma relação com outro homem seria impeditivo, e foi junto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) que ficaram a saber que não era certo à partida que a adoção do João estivesse garantida e que tinha de seguir os trâmites normais, apesar de a doença grave da criança tornar quase certa a adotabilidade.

A diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da SCML explicou à Lusa que efetivamente o tempo de espera de uma família por uma criança pode ser zero se houver disponibilidade para adotar crianças mais velhas, com deficiência ou com problemas de saúde, como foi o caso do João.

De acordo com Isabel Pastor, a realidade em Portugal é a de muitos mais pedidos de adoção do que crianças em condições de serem adotadas, apontando que existem normalmente menos de duas mil candidaturas em lista de espera ao mesmo tempo que, anualmente e com tendência de diminuição, o número de crianças encaminhadas para adoção não ultrapassa as 300.

Segundo a responsável, a maior parte dos casais prefere crianças com menos de 6 anos e isso aumenta o tempo de espera, ao mesmo tempo que há crianças com 7 ou 8 anos, com problemas de saúde ou com alguma deficiência para as quais simplesmente não conseguem encontrar uma família.

Ana Vicente e Margarida Alonso estão noutra fase do processo de candidatura, já que só fizeram o pedido em janeiro deste ano, depois de terem feito a sessão de formação A, que qualquer pessoa pode fazer e não é vinculativa, tendo, entretanto, sido chamadas para uma primeira reunião com a segurança social.

Relativamente ao processo em si, e tendo em conta que as alterações legislativas necessárias à adoção por casais do mesmo sexo só aconteceram em 2016, assumem algum receio em relação à formação dos técnicos.

“Estamos um bocado formadas para formar e estamos com mente aberta para ver quem são as técnicas que nos calham e como é que vão proceder à avaliação e se acontecer alguma coisa estamos disponíveis para lidar com isso de forma positiva”, disse Margarida Alonso.

Isabel Pastor garantiu que os procedimentos “são exatamente iguais” para casais homossexuais ou heterossexuais, desde “a avaliação dos candidatos, a caracterização das crianças, à combinação entre uns e outros, ao acompanhamento da pré-adoção e a transição”.

Admitiu, no entanto, que em relação à avaliação dos candidatos, apesar de os critérios serem os mesmos, há modalidades de avaliação “um bocadinho diferentes”.

“Nas candidaturas dos casais do mesmo sexo, e atualmente, há preocupação em perceber se estas pessoas estão suficientemente preparadas para aguentar e lidar com situações que ainda podem surgir, rejeição, discriminação ou de exclusão por este facto e aí procuramos alguma robustez”, explicou a responsável.

A presidente da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) Portugal garantiu que a associação não recebeu qualquer denúncia sobre práticas discriminatórias em matéria de adoção, mas sim relatos de os processos serem morosos ou relatos de algum desconhecimento face às especificidades dos casais do mesmo sexo.

“Há vontade de não cair no risco de discriminação e havendo vontade é fundamental que o Estado garanta ações de formação continuadas e pressione também no sentido dos currículos académicos”, defendeu Ana Aresta, sublinhando que a questão da formação não se resume apenas aos profissionais, mas está também relacionada com os currículos escolares.

Segundo a responsável, as pessoas LGBTI têm um “medo grande de serem discriminadas” porque “sente-se na pele o peso da discriminação histórica” que existe em torno delas, “muito concretamente em torno da parentalidade”.

“Estamos a falar de projetos de parentalidade que foram adiados durante décadas à conta de uma lei discriminatória. O peso da discriminação sente-se no medo que as pessoas têm por serem lésbicas, gays ou bissexuais e que não vão de algum modo conseguir adotar ou vão ser preteridas nos processos”, apontou, admitindo, no entanto, que os processos de adoção são longos e morosos para toda a gente.

Para o casal Luís Moreira e Diogo Guerreiro, a sua história é um desses casos, apesar de só em 2019 terem entregado todos os documentos. Luís chegou a fazer duas sessões de formação A, uma sozinho, outra com o companheiro e entretanto o casal começou os meses de testes e com acompanhamento da psicologia e assistente social.

A pandemia de covid-19 atrasou processos e a fase de avaliação demorou nove meses, mais três do que o período máximo definido, e só em abril de 2020 tiveram a confirmação de que estão aptos a adotar.

“O processo fica com a data da entrega dos papeis e é a partir daí que conta, o que significa que em julho já estaremos à espera há dois anos”, apontou Luís.

Disse ter noção que estes processos demoram e tenta não ficar demasiado ansioso com isso, seguindo o conselho da psicóloga para se ocupar com outros projetos pessoais “para ir fazendo tempo até que as coisas se concretizem”.

Segundo os dados mais recentes do Instituto de Segurança Social, em 2017 houve nove pedidos de adoção por casais do mesmo sexo, número que duplicou no ano seguinte e que baixou para 17 em 2019.

Segundo o ISS, em 2017 registaram-se sete adoções por casais do mesmo sexo, um número que baixou para quatro no ano seguinte e que chegou a cinco em 2019, o que totaliza 16 adoções em três anos, não havendo ainda dados para 2020.