As autoridades de saúde em Portugal devem começar a planear agora a possibilidade de, no outono, ser necessário realizar três processos de vacinação em simultâneo: administrar vacinas contra a Covid-19 a quem ainda não a recebeu, revacinar quem precisa de uma dose de reforço contra esta doença e vacinar os grupos vulneráveis para a gripe.

Tiago Correia, especialista em saúde internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), defendeu em declarações ao Observador que essa deve ser uma preocupação das entidades competentes porque simboliza uma mudança estrutural nos planos de vacinação: vacinar para duas doenças ao mesmo tempo e possivelmente no mesmo sítio. “Até ao ano passado, só tínhamos uma vacinação massiva contra a gripe porque as vacinas contra a Covid-19 ainda não existiam. Agora pode ser mais complexo”, descreveu.

Por isso é que não se devem poupar esforços para terminar o processo de vacinação contra a Covid-19 pelo menos até ao fim de setembro. Assim evita-se uma sobreposição tão grande de campanhas de inoculação; e libertam-se recursos humanos para a vacinação contra a gripe (já que muitos profissionais de saúde estão alocados aos centros de vacinação contra a Covid-19) e para uma eventual campanha de revacinação.

Essa pode ser uma tarefa árdua. O vice-almirante Henrique Gouveia e Melo, responsável pela task force para a vacinação contra a Covid-19, avisou na Comissão de Saúde da Assembleia da República que Portugal pode falhar a data que havia apontado para alcançar os 70% de pessoas vacinadas com pelo menos uma dose — 8 de agosto.

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O militar informou que a escassez de vacinas, com a qual admitiu estar preocupado, adiará em duas semanas a meta inicialmente delineada. A nova data apontada pelas autoridades de saúde é agora 20 de agosto: “Usaremos todos os stocks que temos para conseguir atingir essa meta até 8 de agosto, mas eventualmente poderá ser mais tarde“, avisou. E esses 70% podem nem sequer ser suficientes: alguns estudos indicam que, à conta da variante delta, que é mais transmissível, será necessário chegar aos 80% de vacinados para vislumbrar a imunidade de grupo contra a Covid-19.

O facto de, no ano passado, a época da gripe ter provocado poucos infetados não deve descansar as autoridades de saúde, insiste Tiago Correia. A baixa circulação da estirpe do vírus da gripe em 2020 significa que pouca gente foi exposta a ela. “Poderá acontecer a gripe ter um impacto grande [em 2021] porque o ano passado houve pouca incidência e contaminação pelo vírus”, explicou o especialista, ressalvando que a comunidade científica ainda não chegou a conclusões sobre esta matéria.

Pedro Madureira, imunologista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, concorda que “faz sentido” começar a planear um cruzamento das campanhas de vacinação contra a Covid-19 e contra a gripe, tanto no tempo como no espaço, porque “não é descabido pensar que o pico da gripe e da Covid-19 se podem sobrepor”. A preocupação com as revacinações é real, principalmente para quem tomou vacinas que expõem o organismo apenas a partes do vírus (como a da Moderna, Pfizer e AstraZeneca) e não à sua totalidade (como a chinesa CoronaVac ou a que está a ser desenvolvida pela portuguesa Immunethep).

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Quem apanhou vacinas que apresentam ao sistema imunitário apenas uma parte da informação genética ou da estrutura do vírus pode estar mais vulnerável perante variantes com mutações precisamente nesses sítios — algo que pode afetar a capacidade das vacinas para induzir uma resposta imunitária tão robusta. Quem, por outro lado, foi exposto à totalidade do vírus, deve estar mais protegido caso venha a contactar com uma nova variante porque desenvolveu anticorpos contra todas as partes do vírus . Se uns não forem tão capacitados para enfrentar o invasor, outros serão.

Questionado pelo Observador sobre a segurança de administrar duas vacinas diferentes em simultâneo, Pedro Madureira explica que “faz sentido conjugar vacinas” porque, no passado, isso nunca constituiu um risco para a saúde — é comum fazê-lo em crianças, por exemplo. O maior problema podem ser os adjuvantes utilizados nas receitas para essas vacinas — componentes acrescentados às vacinas (e que não são sempre os mesmos para todas elas) para estimular o sistema imunológico a desencadear uma resposta imunitária mais rápida e robusta.

Como os adjuvantes potenciam respostas inflamatórias, um excesso de concentração destas substâncias no organismo poderá desencadear uma reação exacerbada do organismo. Por isso é que, mesmo não antevendo problemas em conjugar a vacina da Covid-19 com a da gripe, “tem que se estudar”: “As entidades reguladoras têm de se pronunciar e as primeiras pessoas a testar esta formulação terão de ser seguidas de forma mais rigorosa”, apelou o imunologista.

Poucos casos de gripe no hemisfério sul comprometem a vacina para o norte

As reações dos especialistas procurados pelo Observador surgem depois de um membro do Joint Committee on Vaccination and Imunization, um comité de cientistas que assessora os departamentos de saúde do Reino Unido, ter dito que as autoridades de saúde devem preparar-se para a possibilidade de terem de administrar doses de vacinas contra a gripe e contra a Covid-19 numa mesma visita aos centro de vacinação — sobretudo se for necessário reforçar a imunização anualmente, principalmente nas pessoas mais vulneráveis.

Adam Finn, chefe do Centro de Vacinas de Bristol, admitiu que os especialistas estão preocupados com a possibilidade de este inverno ficar marcado por uma grande epidemia de gripe — embora não tenha sido isso o que se verificou em 2020, uma vez que as medidas implementadas contra a Covid-19 também ajudam a reduzir a transmissão de outros vírus respiratórios, como o da gripe. Nada garante, no entanto, que em 2021 tudo corra como há um ano.

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A época da gripe costuma chegar ao hemisfério norte entre setembro e outubro, mas passa antes pelo hemisfério sul (que vive neste momento o outono e inverno), o que permite antever o que acontecerá deste lado do globo alguns meses mais tarde. Em meados de junho, os cientistas australianos reportaram que a gripe “não se encontra em lado nenhum”: “Ou se erradicou ou está em níveis tão baixos que estamos a ter dificuldades em detetá-la”, descreveu Ian Barr, vice-diretor do Centro Colaborativo de Investigação do Influenza da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Enquanto em maio de 2019 a Austrália tinha registado 30 mil casos confirmados de gripe, este ano foram apenas 71. De 1 de janeiro até 30 de junho de 2021, só 365 casos de gripe foram confirmados laboratorialmente na Austrália — 57 vezes menos que os 20.819 infetados registados no mesmo período de 2020. Apesar de as estatísticas do ano passado já terem sido extremamente baixas — os dados falam de 231 casos em maio de 2020 —, os números apanharam os especialistas de surpresa: as autoridades estavam preparadas para receber mais doentes porque a mobilidade das pessoas também é maior agora do que foi no ano passado.

As autoridades de saúde australianas assumem que os infetados com o vírus da gripe podem ser mais que os identificados oficialmente, mas como muitos dos viajantes são obrigados a cumprir quarentena, os casos não chegam a ser contabilizados. São boas notícias para os serviços de saúde, que assim ficam menos sobrecarregados, mas que podem trazer complicações para o hemisfério norte.

É que os cientistas dependem das sequenciações feitas nos países do sul aos vírus da gripe detetados nas amostras recolhidas para criar as vacinas contra as estirpes mais ativas. Com menos amostras para sequenciar e para partilhar com a comunidade científica, essa formulação torna-se mais complicada. Ian Barr alertou precisamente para essa dificuldade: “Normalmente, [a formulação da vacina contra a gripe] tem um forte viés em amostras do hemisfério sul. Será muito difícil fazer um julgamento sobre o que acontecerá com esta vacina se não obtivermos mais amostras no hemisfério sul”.