Mercenários colombianos, um médico (e pastor megalómano que vive nos EUA) e um tradutor que foi contratado pela Internet. Estas são alguns dos protagonistas da morte do Presidente do Haiti, Jovenel Moïse, um crime cujos contornos ainda não são totalmente conhecidos.

A viúva de Jovenel Moïse, que ficou ferida na sequência do ataque, falou pela primeira vez este fim de semana sobre o que se passou na madrugada de 7 de julho. A receber cuidados médicos num hospital de Miami, Martine Moïse descreveu como decorreu o assassinato numa mensagem de voz publicada na sua conta pessoal do Twitter: “Num piscar de olhos, os mercenários entraram na minha casa e dispararam contra o meu marido… Nem lhe deram a oportunidade de dizer uma palavra”.

Além disso, desabafou que “tem chorado muito”, mas insiste que o Haiti não pode “perder o rumo”. “Não podemos deixar que o seu sangue tenha sido derramado em vão”.

A polícia do Haiti ainda não chegou a grandes conclusões, mas já apurou que quem matou o Presidente terá sido um grupo de 28 mercenários, em que se inclui dois cidadãos haitianos que residiam nos Estados Unidos e vários oficiais que atuavam no exército da Colômbia. Segundo um vídeo partilhado nas redes sociais, os agressores apresentaram-se como membros da DAE (Agência da Administração de Controlo de Drogas Norte-americana), mas as autoridades norte-americanas desmentiram qualquer operação.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os autores do crime puseram-se em fuga após o assassinato e tentaram encontrar refúgio na embaixada do Taiwan no Haiti, mas Leon Charles, diretor-geral da polícia do Haiti, já veio anunciar que quatro alegados envolvidos no ataque foram alvejados, enquanto quinze colombianos e dois cidadãos norte-americanos foram detidos.

Haiti. Detidos quinze colombianos e dois cidadãos norte-americanos

O médico que acusava os políticos de serem “corruptos”

Nas últimas horas, Christian Emmanuel Sanon, um médico de 63 anos, foi detido pela polícia, que já disse que poderá ser um “suspeito-chave” e deverá ter sido o mentor do assassinato do Presidente Jovenel Moïse. O homem já tinha viajado para o país no início de junho com “motivações políticas”, avança a polícia, que acrescenta ainda que foi contactado pelos mercenários colombianos detidos.

Médico detido no Haiti é “suspeito-chave” no assassinato do presidente Jovenel Moïse

Christian Emmanuel Sanon vivia em Miami, mas ainda não se conhecem grandes detalhes sobre as intenções que poderão ter estado na base do assassinato. Contudo, num vídeo publicado em 2011, o médico aborda a corrupção na política e descreve-se como sendo um possível candidato à liderança para o Haiti. “[Os políticos] nunca foram capazes de ver a realidade do país e usar os recursos”, afirmou, questionado: “Onde está a liderança no Haiti? Em lado nenhum. Porquê? Porque são corruptos e estão envolvidos no mesmo movimento em que o mundo está”.

Eles não querem saber do país, do povo. [Os políticos] querem as coisas para eles, querem pôr as coisas no seu bolso. Comigo no poder vão ter de me dizer o que vão fazer com o urânio, com o petróleo, com o ouro que se quer explorar e que se quer tirar do país. Nove milhões das pessoas estão no limiar do pobreza com os recursos do país. Precisamos de uma nova liderança no país”, insta Christian Emmanuel Sanon.

Mais recentemente, o médico estará na origem da criação do movimento “Haiti Lives Matter”. Num tweet publicado em junho na conta do movimento, pode ler-se que um “governo de transição no Haiti é a única maneira de avançar. Port-au-Prince está em completo caos”.

Na descrição da conta pode, também, ler-se que “Haiti Lives Matter” é uma iniciativa do “Doutor” Christian Emmanuel Sanon, “físico e pastor”, que “trabalhou durante toda a sua vida pelas necessidades físicas e espirituais dos haitianos de todo o mundo”.

Após a detenção, Leon Charles disse que na casa do médico foram encontrados vários objetos que comprometem e que parecem comprovar a ligação de Christian Emmanuel Sanon ao assassinato do Presidente. Segundo diz o The Guaridan, foram recolhidos para prova um chapéu com o logotipo da DAE, 20 caixas com balas, armas, dois carros e matrículas de automóveis da República Dominicana — que parece indiciar uma possível fuga para o único vizinho terrestre do Haiti.

Os mercenários colombianos e a versão contraditória dos factos

O testemunho dos detidos que estiveram envolvidos no crime não oferecem à polícia uma versão coerente daquilo que aconteceu, sendo que todos parecem apontar detalhes contraditórios.

James Solanges, um cidadão do Haiti que morava nos EUA e que foi detido, disse às autoridades que apenas tinha sido contratado para traduzir uma equipa de norte-americanos que iria prender Jovenel Moïse. Relatou ainda ter encontrado o emprego na Internet e indicou que nunca pensou que se trataria do assassinato do Presidente do Haiti.

Um dos quatro colombianos que acabaram por ser alvejado foi Mauricio Javier Romero, um ex-militar de guerra da Colômbia. Segundo o que contou a mulher do ex-oficial colombiano ao The New York Times, um amigo ligou-lhe em junho para oferecer-lhe um trabalho “legal” e “seguro”, mas que teria de ir para o estrangeiro.

“A pessoa garantiu-lhe que ele não se meteria em apuros e que era uma boa oportunidade para crescer profissionalmente”, relata Giovanna Romero.

Ao que tudo indica, terá sido Christian Emmanuel Sanon quem contratou uma empresa de segurança privada de Miami em junho. Mauricio Javier Romero colaborava por vezes com algumas ações da empresa, que recrutava veteranos de guerra colombianos conhecidos por serem bem treinados, assinala o jornal norte-americano, que também adianta que ganham cerca três mil dólares por mês (cerca de 2500 euros por mês), uma quantia substancialmente maior daquilo que ganham na Colômbia.

“O Mauricio nunca se meteria numa operação deste tipo independentemente do dinheiro que lhe oferecessem”, garante Giovanna Romero. Também a irmã do ex-oficial colombiano, Yenny Carolina Capador, contou ao The New York Times que o familiar ia proteger uma “pessoa muito importante”. “Estou 100% segura de que o meu irmão não estava a magoar outra pessoa, sei que o meu irmão foi tomar contar de alguém”.

Testumunho idêntico deu Duberney Capador, irmã de um colombiano morto pela polícia haitiana, que revelou ao The Guardian que o irmão foi para o Haiti para proteger uma “pessoa importante”. “Ele não é um mercenário, é um bom homem”, vinca.

Na altura do seu assassinato, o Presidente do Haiti atravessava um dos piores momentos em termos de aprovação pela opinião pública do Haiti: governava por decreto, queria mudar a Constituição e tinha alguns adversários, principalmente gangues armados que controlam cidades inteiras e que servem como contrapoder.

Haiti. A crise política, a impopularidade de Jovenel Moïse e as suspeitas sobre os americanos do DEA