Enviado especial do Observador, em Tóquio

Existe quase um ritual antes de os judocas entrarem no tatami, neste caso num dos tatamis como acontece na sessão matinal (à tarde passa a haver apenas um): passam pelo aquecimento, colocam-se posicionados na zona de entrada à espera que o combate anterior termine, andam ali às voltas entre aqueles que gostam de ver o que os outros fazem e outros que preferem ficar a fazer outras coisas. Pode parecer só um pormenor mas ali está a chave de tudo. É ali, naquele espaço que fica atrás de uma posição ao nível do solo dos repórteres fotográficos, que tudo se começa a escrever. Foi ali, naquele espaço, que Jorge Fonseca começou a escrever a sua história.

Enquanto Toma Nikiforov, belga que tinha combatido antes contra o brasileiro Rafael Buzacarini, ia agitando as pernas quase que num prolongamento da passagem anterior pelo tatami, Jorge Fonseca continuava com aquele olhar focado de quem vem numa missão para afastar qualquer coisa que lhe apareça pela frente. A certa altura, tirou do saco que era transportado pelo treinador a garrafa de água, bebeu dois tragos, arrumou e colocou-se de costas para Pedro Soares dar quatro ou cinco palmadas com as duas mãos que a nós nos fariam levantar voo mas que ao judoca são um pequeno aquecimento. Afinal, não era preciso tanto: Fonseca avançou, olhou para o belga, conseguiu meter a pega, usou a explosão em força, fez ippon e garantiu a vitória em 17 segundos.

Nikiforov colocava as mãos na cabeça, não querendo acreditar no que se tinha passado, enquanto Jorge Fonseca ajeitava os ombros e seguia com tranquilidade para o percurso de regresso ao ponto de partida, sem falar na zona mista para manter o foco na prova. Ainda Pedro Soares estava a ajeitar a cadeira para se sentar com os braços apoiados em frente e já o judoca do Sporting conseguira a pega que lhe daria a passagem aos quartos.

Houve apenas uma surpresa na categoria de -100kg nas duas rondas iniciais, com a vitória do alemão Karl-Richard Frey contra o número três do mundo, o holandês Michael Korrel. Ou seja, e entre os oito melhores, sete ocupam atualmente o top 8 mundial da categoria, havendo apenas o germânico como intruso. E o próximo duelo de Jorge Fonseca trazia boas e más recordações: olhando apenas para as principais provas internacionais, tinha ganho na final dos Mundiais de 2019 a Niiaz Iliasov mas também perdera no último Campeonato da Europa com o russo. Tudo em aberto num combate onde os rankings valiam pouco porque eram os melhores.

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Ao contrário do que é normal, Iliasov não ocupou a sua posição à frente e fez um pequeno aquecimento mais atrás da zona de espera, enquanto Jorge Fonseca, de novo de branco, tinha os phones nos ouvidos enquanto ia vendo os combates que decorriam à sua frente com as mãos nas ancas. A certa altura o judoca já estava até quase a dançar como se tivesse o adversário à sua frente, naquela ginga que nos habituámos sobretudo a ver quando no final das competições consegue a medalha de ouro. No tatami, aí, o duelo não teve nada a ver com o que se tinha passado antes: foi um jogo de paciência, sempre à procura da melhor pega, a ser castigado a par do russo apesar de não haver da parte do adversário qualquer intenção de atacar (a certa altura Pedro Soares até colocou as mãos no ar), a ter de esperar alguns minutos pela assistência médica a Iliasov sem perder o foco. A parte física começava a acusar mas uma pega no braço esquerdo do russo foi o suficiente para, com quase oito minutos de combate com golden score, conseguir marcar o waza-ari que o colocou nas meias-finais.

Sem nunca perder noção do que se estava a passar à sua volta, como no gesto que teve quando Iliasov voltou depois de receber assistência na cabeça em que perguntou se estava tudo bem com o adversário, Fonseca teve uma paciência de campeão até conseguir a pequena oportunidade para ganhar e passar às meias-finais. Estava cansado, como se notava pela língua de fora, mas de punho fechado a festejar o triunfo, tendo depois dado um beijo na cabeça de Pedro Soares como que a agradecer as constantes indicações que o técnico foi dando ao longo do combate. O judoca estava apenas a um triunfo de se tornar apenas o terceiro judoca português a conseguir uma medalha nos Jogos Olímpicos. Mais do que isso, poderia ser o primeiro atleta nacional que não do atletismo a conseguir uma medalha de ouro, juntando-se a Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Nelson Évora. Para o primeiro cenário, bastava uma vitória; para o segundo, teria de conseguir dois triunfos.

À tarde, depois dos quatro combates femininos de -78kg, o quadro masculino começou com as repescagens, tendo o canadiano Shady Elnahas e o israelita Peter Paltchik no tatami e Jorge Fonseca na zona perto da entrada outra vez a ouvir música que o fazia de quando em vez dançar e mexer a cabeça. Tirou os chinelos, bebeu um pouco da bebida energética que tinha, depois um pouco de água, ia aquecendo as articulações dos pulsos e dos tornozelos, dava murros no peito e nos braços quase para aquecer aquilo que já estava a escaldar para entrar.

Acabou por ser um combate ingrato. À semelhança do que tinha acontecido com o russo Iliasov, Fonseca soube perceber que teria de manter a paciência, procurar a melhor pega e aproveitar um erro adversário para pontuar mas uma lesão no dedo da mão, que o levou a parar por duas vezes e a dar um grito de dor a certa altura, fez com que tivesse menos argumentos durante grande parte do combate para procurar a pega que lhe permitisse pontuar e passar a decisão para o seu lado. Os minutos foram passando e tudo acabou por cair a 15 segundos do final, quando Guham Cho, sexto do mundo, conseguiu agarrar bem o português, aguentou a tentativa de saída daquela posição e marcou um waza-ari decisivo, relegando Fonseca para a luta pela medalha de bronze com Shady Elnahas. A frustração era mais que muita mas foi cumprimentar o sul-coreano, trocou algumas palavras e saiu depois não só inconformado com a derrota mas também com um esgar de dor pela lesão contraída.

O bicampeão mundial e número 2 do mundo tinha três adversários num só combate a valer medalha olímpica: 1) o canadiano, oitavo do ranking; 2) a frustração de ter deixado escapar por segundos pelo menos a hipótese de levar tudo para golden score; 3) a questão da recuperação física. E, seja ou não coincidência, a final dos -78kg femininos entre Madeleine Malonga e Shori Hamada começou sem que Jorge Fonseca estivesse sequer na zona onde costumava andar em aquecimento antes dos combates, entrando apenas no início do combate já vestido de azul, a ouvir música e sem proteção nos dedos, sinal de que poderia ter melhorado da questão física da meia-final. Afinal, como explicou depois na zona mista, tinha tanta vontade de ganhar e sentia-se tão ansioso para chegar ao ouro que sofreu cãibras nos dedos da mão. A mesma mão que, apesar do desgaste, conseguiu virar Elnahas para o bronze a 26 segundos do final, gerido de forma exemplar mesmo com dois castigos.

Mesmo com Pedro Soares expulso do banco por dar indicações com o combate a decorrer, Jorge Fonseca ouviu o técnico e segurou a primeira medalha de Portugal em Tóquio, a terceira olímpica do judo. Abraçou o adversário, saudou os elementos da comitiva nacional na bancada, ficou sentado à saída do tatami, abraçou o treinador, foi para a zona mista onde começou logo a falar a um canal japonês. Plena satisfação? Ele, Jorge Fonseca, diz que não. Diz que não porque foi feito para ganhar, para ter o ouro, e é assim que promete ir buscar já em 2024, em Paris. Aquelas mãos que tiveram cãibras são mesmo de ouro, mesmo que a medalha fique agora pelo bronze.