Enviado especial do Observador, em Tóquio

– É o melhor dia da tua carreira?
– Não. Quero mais. Nasci para o ouro, não nasci para o bronze.

Jorge Fonseca já tinha desarmado no tapete o canadiano Shady Elnahas. Jorge Fonseca já tinha desarmado na chegada à zona mista os voluntários presentes entre brincadeiras de quem está feliz com a medalha olímpica. Jorge Fonseca conseguiu também desarmar os jornalistas portugueses numa primeira resposta de quem ficando em terceiro lugar é um campeão. “Estou feliz mas não consegui o meu grande objetivo, que era ser campeão olímpico. Trabalhei muita para esta prova, de manhã, à tarde, à noite, tudo o que foi preciso para o ouro”, atirou.

Chegado à zona mista, ainda com a final da categoria de -100kg a decorrer e entre muitos abraços à comitiva nacional que estava presente no Nippon Budokan, o judoca tomou conta do espaço. As regras ali não foram bem aquelas que ele queria. Primeiro, teve de se desviar dos jornalistas pela distância de segurança. Depois, ainda se sentou na mesa onde costumam ficar os gravadores e colocando a bandeira portuguesa a criar uma espécie de divisória física de proteção. Também não deu. “Bolas, estás chata…”, atirou entre dentes a rir, respeitando a indicação final de se sentar mais atrás na cadeira, com a bandeira nas pernas e os gravadores à frente. E para que não existisse dúvidas, foi o próprio que explicou o que se tinha passado com os dedos na meia-final.

“Infelizmente a cãibra não me ajudou naquele momento da meia-final. Estraguei o combate todo. Foi um erro, vou aprender. O meu sonho é ser campeão olímpico mas vai ser em Paris. Posso garantir que vou trabalhar para isso”, reforçou, numa ideia que iria repetir variadas vezes nos mais de 15 minutos de conversa que acabaram por ser acelerados de forma natural pela necessidade de preparação antes da cerimónia protocolar de atribuição das medalhas. “Quando fico muito nervoso e com a ansiedade de querer conquistar algo, começo a ter cãibras. Já trabalhei isso com a minha psicóloga, ajudou-me bastante mas não deu para controlar… É a cabeça! A cabeça quer, o corpo tem de reagir mas na meia-final não ajudou”, salientou, antes de recuar no tempo e contar que tinha acontecido só uma vez na carreira, num Europeu Sub-23. “Mas acredito que não vai voltar a acontecer”.

A seguir à meia-final, o meu treinador puxou-me para o canto e deu-me na cabeça. Disse-me ‘Jorge, está na hora de fazer uma coisa histórica’. Trabalhámos muito, temos dois títulos mundiais e viemos aqui para buscar o ouro. Agora é bora para a frente, tenho uma medalha que nunca tive. É terceiro mas eu gosto é do ouro, gosto de senti-lo no pescoço, aquele peso do ouro”, destacou.

Jorge Fonseca é alguém a quem a vida foi colocando obstáculos atrás de obstáculos para que fossem superados. Um, dois, três, os que existirem. O último foi a infeção por Covid-19 também na preparação para esta parte final de ciclo. Resposta? Campeão mundial, medalhado olímpico. Antes, nos Jogos do Rio de Janeiro, o judoca tinha feito um esforço grande para recuperar de um problema oncológico e estar presente para discutir medalhas. Medalhas não, perdão. O ouro. E entre 2016 e 2020, é esse o seu objetivo assumido já para 2024, em Paris.

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“No Rio de Janeiro eu vinha de um cancro, estava a superar e fiz um tratamento muito acelerado para poder chegar aos Jogos. Sofri imenso, a quimioterapia é um tratamento muito duro mas queria muito ir para o Rio. O doutor Passarinho ajudou-me bastante, fez tudo o que tinha para fazer, foi a pessoa que mais me apoiou nessa fase. Cheguei ao Rio e fui o primeiro atleta a projetar o campeão olímpico, se os árbitros não fossem gananciosos tinham-me dado a vitória e até podia ter sido campeão olímpico ali. Agora vim com grande bagagem porque acabei de ser campeão do mundo. Já não estou com a mentalidade de ir para a cerimónia de abertura, fazer aquela festa toda… A minha mentalidade é chegar e ir buscar o que é meu. Cheguei mais tarde que todos os meus colegas, decidi chegar cinco dias antes da prova para poder estar concentrado”, salientou, antes de falar também daqueles pouco menos de 30 segundos em que ficou sem Pedro Soares por expulsão do técnico.

“Estava muito cansado, a entrar em desespero. Marco o waza-ari, a seguir o meu treinador acorda-me, o árbitro mete-o para fora, faltam 26 segundos, acabei de cometer um erro e ele ‘Jorge, não voltes a fazer’… A malta pensa que aquilo é fácil mas cada segundo vale muito. Já tinha dois castigos e tenho uma grande guerra com aquele árbitro espanhol, ele não gosta muito de mim e já me lixou a vida num Masters. Fiquei com muito medo quando vi que era ele a arbitrar. Felizmente hoje correu bem, até lhe pedi desculpa por tantas vezes que já ralhei com ele. Ele é injusto comigo porque não gosta muito da minha atitude mas eu não venho para brincar, venho para o ouro e ele prejudica o meu trabalho. Não somos muito compatíveis. Já estava na hora de lhe mostrar quem manda, que sou eu, não é?”, atirou entre vários momentos de boa disposição numa conversa aberta onde contou também que fez a preparação para os Jogos sobretudo com o enfoque na resistência e na força.

“Estava em modo monstro mas a cãibra destruiu o meu modo monstro. Pronto, olha, agora é trabalhar para mais”, lamentou, em mais uma das várias frases que poderiam facilmente servir de título para um texto sobre a zona mista que merecia ter sido gravado para passar nas televisões ou nas rádios. Ah, mais uma: se ia dançar pimba se ganhasse a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, o que vale a esse nível um bronze?

“Queria dançar pimba mas era com ouro no pescoço, tem uma graça diferente. Mas bronze… vá, podemos dançar uma kizomba. Mas eu não quero dançar kizomba, quero dançar pimba! Posso garantir que vou dançar pimba em Paris, lá na terra dos franceses, ali a ‘comê-los’ todos. Eu estou um bocado por aqui [apontando para a zona da garganta] com os franceses porque um deles [Alexandre Iddir] eliminou-me em casa [Europeu de 2021, na Altice Arena, em Lisboa] e depois meteu-se aos gritos na minha cara. Nenhum homem pode gritar na minha cara, que eu não gosto. Aquele francês fez isso e quero eliminá-lo em casa dele e festejar na cara dele, porque sou rancoroso, não gosto de perder”, deixou já como aviso, antes de contar também o que ouve antes dos combates.

“Oiço muitas coisas mas ao mesmo tempo estou só a interiorizar. Estou sempre a dizer para mim ‘Eu sou o melhor’. A música está a tocar mas nem estou a ouvir, estou só a meter na minha cabeça que sou o melhor do mundo, estou só a dizer ‘I’m the best, I’m the best‘ o tempo todo. Se vocês repararem é o que eu estou a dizer sempre. A música está ali só para não ouvir o barulho das pessoas a gritar. Se tenho alguma especial? Tenho muitas, uma da Mariza, o ‘Melhor de mim’, estou sempre a ouvir essa música. Não tenho aqui o telefone ao pé de mim mas ouço aquela música todos os dias, o melhor de mim está para chegar. Ainda está para chegar e em Paris”, voltou a frisar. Acabado de ganhar uma medalha de bronze, Fonseca já só pensa no ouro em 2024.

Para quem vai a medalha? Para a pessoa de sempre, a mãe. A mãe e a segunda treinadora, que não largou em Tóquio o filho. “Estava sempre a ligar-me entre os combates, a dizer ‘Calma filho, calma filho’. A minha mãe praticamente é a minha segunda treinadora, está sempre lá em cima. Não posso dizer nada, já me ligou mais de dez vezes. Estava mais nervosa que eu. Ligava-me todos os dias, não sabia do fuso horário, então ligava de madrugada a dizer ‘Já devias estar a dormir e estás no Instagram’… É a minha fã número 1 mas está sempre pim, pim, pim. Ainda não falei com ela, vou deixar o coração dela palpitar um bocado…”, contou entre muitos sorrisos.

Jorge Fonseca tinha ligado o modo monstro da boa disposição, apontando para Niiaz Iliasov que passou atrás de si depois de ter ganho também o bronze e dizendo ‘Este é meu filho, meu freguês’. Fez uma paragem um pouco mais a sério, quando admitiu que era um dos judocas mais estudados pelos adversários, que não tinha feito a melhor gestão da condição de campeão mundial em 2019 e que há muitas coisas que lhe passam pela cabeça em relação a quem duvidava de si mas que nesta fase queria sobretudo aproveitar a medalha, esperando que seja apenas a primeira da delegação portuguesa para que as modalidades também cresçam no país do futebol.

“Festa na Aldeia Olímpica? Não quero festa, não me motiva festejar o bronze. Só festejo com ouro. Agora vou comer bem, divertir-me, levar na cabeça do meu treinador, ver o combate para ver o que é que correu mal. A festa, festa mesmo, vai ser em Paris. Vai ser em Paris e vai ser no Marquês de Pombal, com o ouro no pescoço. Vou organizar uma festa em Paris e outra no Marquês de Pombal, com os adeptos todos, os meus fãs todos”, disse ainda na parte final, antes de falar sobre o não patrocínio de marcas como a Adidas ou a Puma. “Diziam que não era campeão, que não tinha mérito desportivo… Essas pessoas só me alimentam, só me dão motivação. Agora eles podem fazer o que quiserem, sou o Jorge Fonseca, bicampeão do mundo e terceiros nos Jogos…”, concluiu.

O judoca estava on fire e essa boa disposição chegou também ao pódio, onde além dos acenos e dos sorrisos ainda olhou para todas as medalhas como se pudesse escolher qual aquela que queria tirar. Depois, chorou. No lapso de menos de um minuto, passou dos sorrisos às lágrimas. Assim é Jorge Fonseca, um atleta e uma pessoa explosiva, pura e com capacidade de fazer ippon a tudo e todos. E aquele que falta fica guardado para 2024.