Enviado especial do Observador, em Tóquio

Quando acabou o combate de manhã com Niiaz Iliasov, Jorge Fonseca saía do tapete e a primeira coisa que fez foi dar um beijo na cabeça do seu treinador, Pedro Soares. Era com o treinador que estava quando ganhou ao russo na final do Campeonato do Mundo de 2019, era com o treinador que estava quando perdeu com o russo nos quartos do Campeonato da Europa de 2021, em Lisboa. Era com o treinador que estava em todas as ocasiões, fossem elas boas ou más, fossem elas desportivas ou pessoais. Se existe um judoca Jorge Fonseca é porque o ex-judoca Pedro Soares viu em Jorge Fonseca um judoca – assim começou aquela que é a ligação mais conseguida de sempre do judo nacional, que teve agora mais um ponto alto com a conquista da terceira medalha olímpica de sempre da modalidade depois dos bronzes de Nuno Delgado e de Telma Monteiro, este na última edição.

Há vários pontos que unem ambos. A paixão pela modalidade, a envergadura na comparação altura/peso, o clube, a ambição. Sobretudo, a ambição. Se Jorge Fonseca assume que mesmo sem ter o treinador ao seu lado consegue ouvi-lo, Pedro Soares também consegue algumas vezes comunicar apenas com um olhar. Dentro dessa cumplicidade, o ponto principal da mensagem após a conquista em Tóquio foi o mesmo: sim, é sempre uma medalha olímpica, a primeira medalha olímpica, mas ainda não é “a” medalha olímpica. Mas o trabalho está feito, com resultados que foram surgindo de forma consistente e com um caminho que levará a mais resultados.

“Esta sinergia que nós temos é uma coisa que demora muitos anos a conquistar. Acompanho o Jorge desde miúdo, são 15 anos de ligação dentro e fora do tapete. Esta ligação, esta conetividade que se mantém mesmo não estando juntos fisicamente é algo que demora muito tempo a conquistar mas é algo que nós felizmente temos. Eu comunico com o Jorge praticamente com o olhar, embora algumas vezes o olhar não chegue quando é preciso transmitir a parte técnica e tática. Consegue-se com muitos anos de ligação”, começou por explicar na zona mista de forma mais calma Pedro Soares, admitindo que a expulsão a 26 segundos do final foi justa.

“São momentos difíceis mas as regras são bem claras, os treinadores só podem falar quando o combate está parado mas achei que ele precisava de uma motivação extra e os sentimentos ali a 30 segundos de ganhar uma medalha nos Jogos são praticamente incontroláveis e foi isso que aconteceu. Não consegui cumprir as regras, infelizmente, e fui bem expulso. Mas também penso que a minha expulsão valeu a pena porque ajudou a terminar o combate e a segurar a vantagem para ganhar a medalha”, disse, passando ao lado de considerações sobre o árbitro espanhol em si que foi “freguês” do discurso de Fonseca mas desta vez sem qualquer crítica.

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Estamos contentes mas não estamos satisfeitos, não estou satisfeito porque sei que o Jorge era em potência um dos grandes candidatos ao ouro. Hoje posso dizer isto, e não disse antes porque achei que não deveria colocar pressão nem nele nem em mim. Até a meia-final podia ter caído para qualquer um dos lados. Perdemos bem mas não fiquei plenamente satisfeito, estou só contente porque a carreira do Jorge está a ter uma consistência bonita, muito aceitável. Dois títulos de campeão do Mundo e agora uma medalha olímpica, ele começa a construir um império muito bom para ele, para a história e para a carreira. A vida de atleta passa rápido e quando olhamos para trás fica aquilo que conseguimos conquistar e está a conquistar muito. Isto vem dar uma sequência lógica ao que temos feito mas não nos deixa completamente satisfeitos, só contentes”, frisou.

No entanto, este foi um caminho que tinha tudo para não correr bem. Porque Jorge Fonseca começou tarde no judo, sem aprender aquelas técnicas iniciais que os mais novos já têm. Porque Jorge Fonseca enfrenta vários adversários na sua categoria que são bem mais altos. Os problemas que poderiam existir na teoria foram tornados soluções ao longo do tempo e assim se construiu dentro do improvável um campeão quase natural.

“O Jorge é um atleta de exceção, é um talento. Não é possível fazer aquilo que o Jorge faz hoje começando a fazer judo tão tarde se não tivesse nascido um talento em pessoa. A partir daí, tendo um talento à nossa frente, é preciso enquadrá-lo, estruturá-lo, adaptar este desporto à sua morfologia. Não vejo nenhuma desvantagem em ser mais baixo, os últimos três campeões olímpicos nesta categoria são todos mais ou menos do tamanho dele. Vejo até grandes vantagens porque o centro de gravidade é mais baixo, é mais difícil cair, a velocidade e a explosão é mais fácil de colocar dentro do tapete porque ele lança-se para baixo com mais velocidade, muitas vezes os adversários nem o conseguem ver. Tem as desvantagens, que são as alavancas dos adversários vindas por cima, e ele tem de começar o combate com a preocupação de baixar essas alavancas para não se deixar controlar. A partir daí, está no campo dele e fica tudo muito mais fácil. O que fizemos foi mesmo isso, adaptar a morfologia dele a este desporto mas, como disse, o Jorge é mesmo fenómeno”, destacou o treinador, que admitiu ainda algumas dificuldades no período depois da primeira vitória no Campeonato do Mundo, em 2019.

“O Jorge é um atleta que já estava estudado até antes desse primeiro Campeonato do Mundo que ganhou. Aquilo que se passou depois de ele vencer esse Mundial de 2019 sem ser um dos candidatos, e esse sim deixou-me bastante feliz, contente e realizado porque ele era um outsider, foi que, e penso que não deve haver problemas em falar nisso, não conseguiu lidar muito bem com o título de campeão do mundo. Aquele dorsal vermelho que ele passou a usar pesou muito, em todas as decisões e ataques que tomava no tapete. Ele não se conseguia encontrar, ele não conseguia ser o Jorge porque estava pressionado. Foi preciso passar alguns meses duros, em que as coisas não aconteciam, em que toda a gente queria ganhar e ele não conseguia manter o resultado desse Campeonato do Mundo. Entretanto veio a Covid-19, tivemos tempo para refletir sobre isso, tivemos a ajuda da doutora Ana Ramirez nesta fase final do ciclo e conseguiu voltar a superar-se”, explicou, acrescentando: “O Jorge voltou a conseguir ser o atleta que é. Para se ter resultados deste nível, um atleta não pode ter medo de falhar e basicamente o que se passou com o Jorge depois de 2019 foi que tinha medo de falhar”.

“Como foi o período entre a meia-final e o combate de atribuição de medalha? Mau, mau… Este desporto nesta fase atira dois atletas para cima, manda dois atletas para baixo e encontram-se num combate para o bronze. Quem vem de baixo vem de uma derrota, aquilo é preciso ser digerido, mastigado em 20 ou 25 minutos. Não é fácil levantar moral porque este é um nível elevadíssimo e sabíamos que ia ser um combate muito difícil para o bronze porque não teve muito tempo para repousar nem para colocar a cabeça no lugar. Portou-se como um campeão, conseguiu entrar digerindo a derrota na meia-final. E porquê? Porque ele sabia que podia ter passado à final. Se soubesse que não tinha nível para chegar à final, talvez tivesse ficado contente porque ia lutar pelo bronze. Este desporto é mesmo isto, para além das capacidades técnicas, é preciso saber lidar com todos estes sentimentos”, concluiu Pedro Soares, pouco antes da subida de Jorge Fonseca ao pódio.