Uma estátua do navegador português Pedro Álvares Cabral, no Rio de Janeiro, foi incendiada na madrugada desta quarta-feira. O ato foi reivindicado por um coletivo indígena, Uruçu Mirim, num protesto contra o chamado “marco temporal”, uma lei que define que os povos indígenas só podem reivindicar terras onde estiveram estabelecidos antes de 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição brasileira.
O grupo recorreu ao Twitter para reivindicar a ação de vandalismo. Na madrugada de quarta-feira, às 3h da manhã, “mais um monumento escravocrata e genocida foi incendiado”, pode ler-se na publicação. O incêndio visou “destruir tudo” o que Pedro Álvares Cabal “simboliza ainda nos dias atuais”, numa forma de protesto contra o “marco temporal” e o “genocídio indígena continuado”. Na estátua do navegador português, o primeiro europeu a chegar ao Brasil, foi inscrita a frase “Marco temporal é genocídio. PL 490 não”.
O Projeto Lei (PL) 490 inclui diversas medidas que estão a ser criticadas pelas comunidades indígenas, que o consideram um retrocesso. Uma delas é o “marco temporal”, que está a ser defendido por algumas populações rurais e setores políticos e que dificulta a demarcação de terras indígenas ao retirar direitos a estes povos.
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Os coletivos indígenas consideram a medida injusta porque não tem em conta as expulsões e a violência de que foram alvo. Além disso, argumentam, ignora o facto de os povos nativos terem sido tutelados pelo Estado e não terem tido, durante anos, o direito de defender-se em tribunal.
“A aprovação deste projeto seria um dos retrocessos mais significativos no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais e recursos desde a redemocratização no Brasil”, defendeu a diretora-adjunta da Human Rights Watch, Anna Lívia Arida. Segundo a lei brasileira, a demarcação define as áreas que pertencem aos indígenas, que aí têm segurança jurídica. Mas a ONG alerta que muitos pedidos de demarcação aguardam uma decisão há décadas.
Esta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai retomar o julgamento de uma ação de reintegração de posse de terras movida pelo governo do Estado Santa Catarina contra a demarcação feito pelo povo Xokleng. A decisão tem o estado de “repercussão geral”, ou seja, a deliberação que vier a ser tomada será vinculativa para futuros processos.
A estátua foi inaugurada em 1900 para comemorar os 400 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. No ato de vandalismo desta quarta-feira, o coletivo colocou pneus à volta do monumento e ateou-lhes fogo, deixando grande parte da estátua manchada de preto.
Ministério Público considerou tese inconstitucional
O Ministério Público (MP) brasileiro considerou esta quarta-feira inconstitucional o Projeto de Lei (PL) 490. Para o MP brasileiro, são inconstitucionais quaisquer medidas que enfraqueçam a proteção às terras indígenas prevista no artigo 231 da Constituição, violem direitos fundamentais e ofendam o direito adquirido dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas”, destacou o procurador Paulo de Tarso Oliveira.
A manifestação do MP foi feita durante uma audiência pública no Senado. Além de representantes do MP, participaram no evento lideranças indígenas e representantes de organizações de investigação e de defesa de direitos socioambientais.
O PL 490 e demais iniciativas que visam suprimir ou reduzir os direitos indígenas ofendem normas internacionais de direitos humanos, por violação à autonomia dos povos indígenas e ao direito ao usufruto exclusivo das suas terras, e pela contrariedade ao princípio da vedação ao retrocesso social e ao direito à consulta livre, prévia e informada”, frisou ainda o Ministério Público em comunicado.
De um lado, a bancada ruralista e instituições ligadas à agropecuária defendem a tese. Do outro, povos indígenas temem perder direito a áreas em processo de demarcação. Nesse sentido, milhares de indígenas de diferentes regiões do Brasil encontram-se acampados em Brasília, capital do país, desde domingo, para tentar travar a perda de direitos.
“A minha experiência na Amazónia tem revelado que todas essas proposições legislativas vêm a reboque de uma dinâmica de violência e de ameaças fomentadas — por ação ou por omissão — pelo próprio Estado Brasileiro, e isso é de uma violência absurda”, alertou ainda Oliveira. O representante do MP acrescentou que há uma relação direta entre as manifestações políticas de agentes do Executivo e o aumento da violência contra os indígenas.
O Brasil tem, sob análise, 237 pedidos de demarcação de terras indígenas. Atualmente, vivem mais de 900 mil indígenas no Brasil, de 305 povos distintos, que falam mais de 180 línguas, de acordo com dados oficiais.