As alterações que os juízes que estão a julgar o caso das mortes nos Comandos fizeram à acusação do Ministério Público, antes de anunciar a decisão final, atenuam algumas das atuações atribuídas a alguns militares julgados pela morte de dois recrutas. Mais: com base nestas mudanças, deixa de ser possível determinar que o estado de saúde do recruta Hugo Abreu, uma das duas vítimas mortais, piorou devido à desidratação, de acordo com o despacho a que o Observador teve acesso.
A acusação indicava que a situação clínica de Hugo Abreu e de outro recruta, Diogo Neves, se tinha agravado uma vez que, apesar de se encontrarem em desidratação profunda, nenhum deles foi colocado numa tenda com refrigeração, mas sim numa tenda onde a temperatura era superior à que se sentia no exterior. As alterações feitas pelos juízes referem apenas que não é possível dizer que o momento em que a situação de saúde de Hugo Abreu se agravou se deve à desidratação profunda.
Em momento não determinado a situação de saúde de Hugo Abreu foi-se agravando, tendo culminado com a paragem cardiorespiratória que lhe sobreveio”, lê-se no despacho.
A leitura do acórdão deste caso estava marcada para segunda-feira. Antes de o fazer, os juízes preparavam-se para anunciar uma alteração não substancial dos factos de que os arguidos estão acusados. Mas, face aos problemas técnicos que levaram a que a sessão tivesse de ser adiada, o coletivo de juízes decidiu comunicar essa alteração aos advogados num despacho escrito. Esse despacho, que acrescenta ou altera 47 factos, não é, no entanto, uma decisão final. Simplesmente, com base na prova produzida ao longo do julgamento, alguns factos da acusação tiveram de ser alterados ou adicionados — e serão depois dados como provados ou não no acórdão.
Decisão no caso das mortes nos Comandos adiada por problemas técnicos no tribunal
Quanto aos arguidos, um dos pontos adicionados refere que Mário Maia, diretor da Prova Zero, “falou ao telefone com o comandante do regimento de comandos, Dores Moreira, alertando-o do calor que se fazia sentir” e que o comandante terá sugerido “que no dia seguinte, fosse alterado o horário das instruções a ministrar”. Outro diz que a decisão de interrupção da Prova Zero foi tomada por Mário Maia, após o médico que estava a acompanhar a instrução e o comandante da companhia de formação, terem defendido que a prova não continuasse.
Outra diz respeito ao arguido Rui Monteiro, Comandante de Companhia e responsável por garantir a segurança de todos os formandos. O acusação referia que tinha violado “gravemente” os seus deveres, numa “atitude cruel, com manifesto desprezo” pelo estado físico e psíquico de José Costa. E acusava-o de lhe ter dado “várias bofetadas” na cara e de ter colocado “os dedos nos olhos”. Com a alteração dos juízes, esse facto passa apenas a referir que Rui Monteiro deu a José Costa “umas palmadas” — e não várias — e lhe “abriu os olhos”. Deixa portanto de ser referido que o Comandante lhe teria colocado os dedos nos olhos.
No ponto 263, a acusação referia também que o arguido Gonçalo Fulgêncio tinha obrigado os formandos, “como castigo”, a “rastejar e a rebolar em cima das silvas”, fazendo com que provocaram feridas que podiam infetar. Agora, a alteração dos juízes retira a palavra “castigo”, que substitui por “ordem”, e detalha que as silvas provocaram “arranhões”— e não feridas que podiam infetar.
Já o arguido José Pires estava acusado ter obrigado o formando Pedro Vizela a rastejar por cima das silvas e de ter dado “um pontapé no ombro esquerdo”. De acordo com o despacho dos juízes, o formando não foi obrigado a rastejar por cima das silvas e, embora alguém lhe tivessem dado “biqueiradas com as botas nas costas”, não foi possível saber quem foi essa pessoa. Isto significa que José Pires poderá vir a ser ilibado deste facto, se o tribunal o der como provado. Os juízes fazem ainda uma alteração em relação a outro recruta que estava no grupo de José Pires, referindo que, depois de se ter sentido mal e ter sido assistido, voltou à instrução “por sua vontade” e não porque a enfermeira lhe disse para o fazer.
No entanto, a grande maioria das alterações são sobre as temperaturas que se faziam sentir no dia em que Hugo Abreu e Dylan Silva morreram. É que, sobre este ponto, a acusação do Ministério Público, confirmada depois a decisão instrutória, apenas referiam de forma genérica o aviso do IPMA que previa que, entre os dias 1 e 6 de setembro de 2016, as temperaturas máximas iriam variar entre nos 35º e os 39º no distrito de Setúbal — o objetivo era mostrar que, apesar destas previsões de calor, o Comandante do Regimento de Comandos decidiu iniciar o 127.º Curso de Comandos.
Agora, o que os juízes fizeram foi especificar as temperaturas do ar e do solo hora a hora, desde as 7h00 às 20h00 de dia 4 de setembro, sentidas em duas estações meteorológicas: de Coruche e de Pegões — que o tribunal considerou serem as que “têm mais representatividade da temperatura do ar para Alcochete”, onde se localiza o Campo de Tiro onde as mortes ocorreram. Estas alterações mostram, por exemplo, que às 15h00 foram registadas temperaturas máximas de 40.9º — superior às previsões do IMPA — e que, a temperatura do solo chegou a atingir os 45.64º.
Agora, os advogados terão um prazo de 10 dias para analisar cada uma das alterações e comunicar se têm novos elementos a apresentar — como a audição de mais testemunhas, por exemplo. Se o fizerem, a audiência de julgamento será reaberta para permitir esses depoimentos. Só depois serão marcadas novas alegações finais e a nova data para a leitura do acórdão. Caso não o façam, será marcada a data para a decisão final do caso.