Na transição para o novo século, enquanto o mundo ainda andava a perceber o que fazer, César Mourão, Carlos M Cunha e Ricardo Peres, decidiram, dentro do restaurante do Chapitô, deitar mão à comédia de improviso, género então raro em Portugal, para criar os Commedia a la Carte. Após 21 anos, já com a saída de um membro e a entrada de outro fixo, Gustavo Miranda — e uma pandemia pelo meio, naturalmente — o grupo continua a esgotar salas de espetáculo.

O ano passado, para celebrar o número redondo do vigésimo adversário, o grupo “gastou o dinheiro todo num espetáculo super tecnológico”. Portanto, este ano, vão fazer “mais do mesmo”. Mas, com 39 espetáculos pela frente, que começam já esta quarta-feira e se prolongam até 28 de novembro em três cidades (Lisboa no Tivoli BBVA, no Porto no Teatro Sá Bandeira e em Leiria no Teatro José Lúcio da Silva, já esgotado), fica a dúvida: como é possível fazer mais do mesmo, manter a longevidade e esgotar salas? A resposta é simples:

O nosso espetáculo não é o purismo do improviso, criámos um conceito com essa base, o público é parte integrante, está lá para nos tramar a vida, não fechamos a quarta parede. A malta é fiel, tem tido um efeito Xutos & Pontapés”, diz Carlos M Cunha em conversa com o Observador, juntamente com Gustavo Miranda.

Se o público é peça fundamental nos vários jogos e momentos musicais que fazem parte dos velhos e novos espetáculos da trupe cómica, a dinâmica do grupo de atores com toda a equipa técnica e de produção, que conta ainda com uma formação musical composta por Guilherme Marinho (Guitarrista), Jaume Pradas (baterista) e Nuno Oliveira (baixista), também o é. Aliás, agora mais do que nunca. “Estamos a deixar muita coisa nas mãos dos técnicos de som, de luz, nos músicos. Só nos reunimos ontem e aí é que decidimos para onde é que o espetáculo vai, chegamos a este limite de loucura”, confessa Carlos M Cunha, que agora também faz parte do elenco do programa “Festa é Festa” da TVI.

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Mas isso não é desleixo ou atitude de quem toma como certo que o público compre os bilhetes. É mais um “respeito pelos três atores e crença na equipa”, diz. E se o ator português está tranquilo, o comediante colombiano deixa sobressair um certo nervosismo, meio a brincar, meio a sério, que não se deve notar em palco já que está na comédia de improviso desde os anos 90. “Claro que o método me assusta muito, mas o espetáculo tem uma estrutura dramática que o suporta. Sabemos que tem um momento musical, certos jogos ou uma história. No meu primeiro ano nos Commedia [em 2017], também fiquei assim, não houve muitos ensaios, porque o ensaio é o convívio. O espetáculo está aquecido por essa relação”, argumenta Gustavo Miranda.

Nestes 20 anos, além da longevidade e de conseguirem esgotar datas, os Commedia já conseguem ter outro efeito algo raro em Portugal: fazer com que os filhos dos pais que os viram no início venham agora com eles. Mesmo em tempo de pandemia. “As pessoas acordavam às 10 da manhã no Porto e assistiam ao nosso espetáculo, é de uma fidelidade total”, afirma Gustavo Miranda.

O ator e também escritor, que tem andado por Portugal, pelo Brasil e pela Colômbia, também a acompanhar alguns nomes grandes da comédia como os Barbixas ou a Porta dos Fundos, apesar de já estar perfeitamente habituado aos tiques e timings da língua portuguesa, ainda vê diferenças nos vários públicos com que vai contactando. Ainda assim, no que ao improviso diz respeito, não estranha esta fidelidade. Afinal, a língua do improviso acaba por ser universal. “Sim, claro que há diferenças, mas o ser humano é muito parecido, a improvisação é uma linguagem de humor muito espontânea, faz-te rir independentemente da cultura”, conta.

O futuro do improviso, o erro como chave e um tipo de comédia que lhes mudou a vida

Quanto ao futuro do tipo de humor que Carlos M Cunha, Gustavo Miranda e César Mourão praticam, há uma certa confiança que este formato vai conseguir sobreviver à revolução tecnológica. Até porque começam a surgir projetos nesse sentido onde alguns dos elementos dos Commedia trabalham juntos com outros atores internacionais.

A verdade é que, segundo os comediantes, o improviso já está na linguagem televisiva há muito tempo, especialmente se olharmos para o outro lado do Atlântico. Por cá e no resto da Europa, o importante é que se cuide bem do erro. “Quem realiza tem de perceber que não pode fechar planos, podes perder um gesto de uma mão ou uma posição do pé”, conta Carlos M. Cunha.  No fundo, respeitar o que o público mais gosta: ver o ator a falhar. “Em televisão e em cinema trabalha-se muito a edição do erro, esse encontro é um lugar mais difícil. É uma conquista que é feita por diferentes lugares”, acrescenta Gustavo Miranda.

Portanto, o que é preciso é estudar bem a estrutura do improviso, criar determinadas dinâmicas. “Pensar no como”, partindo do que se quer fazer em palco e não tanto nos outros exemplos que se vendem lá fora. E claro, criar uma relação única com o público, missão que os Commedia a la Carte acreditam estar a cumprir. “O espetáculo desta quarta-feira vai servir para melhorar o próximo e assim sucessivamente. O erro acontece, faz parte, o espetáculo vive do erro e o público adora isso e também como o resolvemos. Esse é o alimento do improviso”, finaliza Carlos M. Cunha.

Os dois atores, pioneiros do estilo nos respetivos países, confessam ainda que o improviso tem ajudado muito na parte pessoal. Para Carlos M Cunha, fez com que mudasse radicalmente a sua vida quando chegou aos 30 anos, largando uma carreira de militar para se tornar artesão em Porto Covo e, logo a seguir, chegar ao Chapitô. Agora, já sabendo lidar bem com o erro, até já reabriu o seu bar. Para Gustavo Miranda, um dos fundadores do grupo Cia. Acción Impro (um dos mais influentes na América Latina), que diz ser “um péssimo humorista na vida real”, o improviso foi o que o fez estar em Portugal hoje. Ver o que acontece, não dizer logo que não. Afinal, a regra número um desta comédia é: “sim e…”.