Era tão fácil não gostar de Michael Schumacher. Num mundo então dividido entre os que amavam Ayrton Senna e os que o odiavam, porque haveriam os primeiros de gostar do desafiador que vinha ameaçar a hegemonia há tanto anunciada nas estrelas para o seu herói? E os segundos, para que quereriam um piloto ainda mais competitivo, mais implacável, mais Senna do que o próprio Senna?
A menos que se fosse alemão. Claro. A menos que se fosse do país que fizesse os melhores carros do mundo e nunca tivesse tido um campeão. Aliás, campeão não; um rolo compressor que esmagasse toda a concorrência.
Mas Ayrton morreu quando perseguia Schumacher em Imola e ele ficou sozinho na pista. Um dos melhores bailarinos de todos os tempos abandonado numa festa de tímidos e funcionários. O piloto que adorava conduzir à chuva, quando todos os outros reduziam a velocidade e esperavam que o sol voltasse. Ainda ganhou dois campeonatos com o carro de uns tipos que faziam pullovers e, depois, teve, provavelmente, o gesto mais romântico da história da Alemanha e nós quase nem reparámos: assinou pela Ferrari.
[o trailer de “Schumacher”:]
Isso. Ele que podia ter assinado pela McLaren ou pela Williams ou, simplesmente, ter-se deixado estar onde estava e ganhado uns 20 campeonatos de seguida, foi correr pelos carros mais míticos, mais bonitos e mais cheios de problemas de toda a Fórmula 1. Isto é, como não havia mais ninguém, foi competir contra o carro, contra a lógica, contra ele mesmo. Ia fazer o que ninguém conseguia há quase 20 anos: vencer os carros mais rápidos do mundo aos comandos de uma caixa de sapatos (linda. Uma caixa linda).
É difícil contar histórias sobre personagens perfeitas, deuses sem contradições. Mesmo os devotos de Michael Schumacher, que acompanharam toda a sua extraordinária carreira de piloto, provavelmente gostavam dele como se gosta de um Mercedes: como uma máquina implacável, não exatamente como um ser humano. E o que “Schumacher”-o-documentário vem mostrar é aquilo de que já suspeitávamos: é que Schumi era perfeito também fora da pista. Nem um abusozinho de álcool ou drogas, nem uma facada no casamento, nem a ponta dum trauma a ajustar com o pai ou com a mãe, a prima, o país, o cachorro. Era – é – um filho, marido e pai exemplar, um profissional inigualável que trabalhava todos os dias ao lado dos mecânicos até às dez da noite, dormia o número de horas certo, despachava-se de manhã no número de minutos certo e regressava ao trabalho, onde todos os adoravam, exatamente como em casa.
O novo documentário da Netflix sobre o heptacampeão mundial de Fórmula 1 (ainda hoje um record, empatado com Lewis Hamilton) segue também a “fórmula 1” ou, pelo menos, nº 1, do género: entrevistas com cabeças falantes + imagens de arquivo. Entre as primeiras, conta-se toda a família próxima (a mulher Corinna, os filhos Mick e Gina, o irmão Ralf e o pai Rolf), antigos adversários como Damon Hill ou Mika Hakkinen (respetivamente, segundo e primeiro mais cool do paddock), antigos companheiros de equipa, ou seja, aqueles tipos pagos para nos dar um termo de comparação, escala (isto é o que ser humano consegue fazer com este carro; agora, vejam Schumacher), como Eddie Irvine ou David Coulthard, e alguns daqueles figurões que sempre mandaram na Fórmula 1 não se sabe bem porquê, como Bernie Ecclestone, Jean Todt, Flavio Briatore e outros que ali aparecem com mais mecânica já operada na cara do que um carro de corridas.
No capítulo das imagens, encontramos algumas do arquivo pessoal da família a revelarem um Schumi igual a ele mesmo desde adolescente e outras que confirmam que os duelos mais interessantes da Fórmula 1 muitas vezes se disputam fora dos carros, com os pilotos de dedo em riste e quase a chegarem a vias de facto, junto à boxe ou rail mais próximo.
O problema da linhagem de documentários de que “Schumacher” descende é essa mesma: querer, tão obedientemente, ser parte de uma linhagem, a dos documentários de plataforma, aplicados, do início ao fim, em não deixarem vestígios de qualquer coisa que se possa confundir com uma “autoria”. Assinado por três realizadores, algo, desde logo, invulgar e informação que, como de costume, a Netflix opta por deixar só ao alcance de quem quiser mesmo muito saber, “Schumacher” é o resultado do trabalho competente de Hanns-Bruno Kammertöns, Vanessa Nöcker e Michael Wech (trio vindo essencialmente da televisão alemã, para a qual tinham feito há pouco um objeto similar dedicado a outro herói nacional do desporto: “Boris Becker – Der Spieler”).
Todavia, não vai naturalmente além daquilo a que se propõe: ser a entrada enciclopédica sobre mais esta figura do nosso tempo, denunciada na banalidade de rótulo dos títulos (“Schumacher”, “Ronaldo”, “Tiger”, “Senna” – este último, porém, um brilhantíssimo objeto, vários furos acima do que aqui temos aberto agora, em cima da mesa). Desprovida de ângulo, é uma estética que parece contentar-se em tentar secar os assuntos, dissuadir, pelo menos por uns anos, quem mais possa andar interessado naqueles temas: já está, já falámos do Schumacher, já dissemos tudo o que havia para dizer sobre o Ronaldo, chegámos primeiro, azar o vosso.
Isto é, em matéria de documentários sobre figuras mitológicas do desporto, estamos longe da arte de “The Last Dance”. Ainda assim, é difícil resistir a não clicar e abrir duas horas na vida de um homem acerca do qual, verdadeiramente, soubemos sempre tão pouco. E o que “Schumacher” revela é uma pessoa melhor do que talvez alguns de nós esperassem. O filho de uma família normal, sem qualquer espécie de posses, que conseguiu um lugar na Fórmula 1 simplesmente porque era impossível não ver que ele era um fora-de-série. E o perfeccionista incapaz de reconhecer os próprios erros, mas que, um dia, numa conferência de imprensa, chorou. O miúdo crescido que, desde o tempo dos karts, se divertia não a ganhar, mas a ganhar com o pior carro da corrida (a ironia da cagança dos diretores da Ferrari contraposta, secamente, aos testemunhos de pilotos e outros intervenientes sobre a verdadeira qualidade dos carros de então do Cavallino Rampante é, aliás, talvez o único momento em que o documentário levanta a cabeça do caderno de encargos e mostra alguma panache).
Quanto ao mais, é a espada que paira sobre todo o filme para só se mostrar nos minutos finais: a razão amarga de uma obra que fala em termos póstumos de um homem vivo. A contradição comovente de a mulher, Corinna, falar sempre de “Michael” no presente, enquanto todos falam de alguém que já não está cá. “O Michael está cá”, garante ela. “Está diferente, mas está cá.”
Não faltam citações nos jornais dos últimos dias sobre estes minutos finais em que a família presta raras declarações sobre a situação de Schumacher depois do grave acidente de ski, em Dezembro de 2013, e não seremos nós a fazer mais spoilers sobre o assunto. Só talvez dizer que “Schumacher” é tão reservado como se esperaria de algo com esse nome. E que comove o desabafo final do filho Mick, ele próprio um piloto chegado este ano à Fórmula 1.
De resto, a vida dos super-heróis depois do dia em que despem a capa é assunto com que a nossa cultura pós-morte de Deus ainda anda a descobrir como gerir.