O historiador José-Augusto França, uma das grandes figuras da cultura portuguesa e um pioneiro da história da arte, morreu este sábado à tarde em Jarzé (França) aos 98 anos. As causas da morte não foram imediatamente conhecidas. A informação foi confirmada ao Observador por um amigo da família, a quem a filha de José-Augusto França transmitiu a notícia.

O autor de Amadeo de Souza-Cardoso, o Português à Força estava há vários anos internado numa residência de cuidados de saúde em Jarzé, perto de Angers, depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral em 2018, o que à época chegou a motivar notícias não confirmadas da sua morte.

“Perdemos uma das maiores figuras culturais do Portugal contemporâneo: historiador e crítico de arte, sociólogo, professor, diretor e animador de revistas, ficcionista e memorialista”, escreveu o Presidente da República na página oficial na internet. “Numa época em que a arte portuguesa tem vindo a alcançar o reconhecimento internacional há muito devido, é justo lembrar o muito que devemos a quem incansavelmente produziu um discurso crítico e histórico sobre as artes em Portugal. E ninguém o faz com mais intensidade, sabedoria e distinção do que José-Augusto França”, sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa.

Também no sábado à noite, a ministra da Cultura enviou à imprensa uma nota de pesar em que lamentou “profundamente” a morte de França, classificando-o como “vulto maior da cultura portuguesa das últimas seis décadas e um dos grandes pensadores portugueses dos séculos XX e XXI”. “Sobre si mesmo dizia que respirava arte – não precisava de o dizer, porque o sentíamos. Fez da partilha do seu conhecimento enciclopédico a razão primordial da sua vida e esse é o maior testamento que nos deixa: a forma como iluminou e inspirou sucessivas gerações de alunos, leitores e discípulos”, escreveu a ministra Graça Fonseca.

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José-Augusto França deu aulas na Universidade Nova de Lisboa, onde criou o mestrado de história da arte e onde fez uma das suas últimas aparições públicas, em abril de 2016, ao lado de Hélder Macedo e Adriano Moreira.

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Nascido em Tomar, a 16 de novembro de 1922, passou a viver em Lisboa ainda criança e estudou no Liceu Gil Vicente, na Graça. Frequentou o curso de ciências histórico-filosóficas na Faculdade de Letras. Só veio a completar o ensino superior em França, onde obteve os graus de doutor em história (1962) e de doutor em letras e ciências humanas (1967), lê-se no Dicionário de Historiadores Portugueses (da Biblioteca Nacional de Portugal e do Centro de História da Universidade de Lisboa).

Publicou dezenas de obras nas áreas da história, crítica da arte e sociologia. Foi feito Oficial da Ordre du Mérite (França, 1978), comendador da Ordem do Rio Branco (Brasil, 1978), oficial da Ordem de Santiago da Espada (1983) e grande oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1991). Foi galardoado pelo presidente Mário Soares em 1992, depois da última aula que deu na Universidade Nova, com a Grã-Cruz da Instrução Pública.

Da vasta obra, destacam-se estudos sobre a reconstrução da Baixa Pombalina, tema que foi aliás uma das suas teses de doutoramento na Universidade de Paris IV (Panthón-Sorbonne), e obras sobre os maiores artistas portugueses do século XX como Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros. A Arte em Portugal no Século XIX (1967) e A Arte em Portugal no Século XX (1974) são dois dos seus livros mais conhecidos, de par com Lisboa: Urbanismo e Arquitetura (1980) ou ainda Lisboa: História física e Moral (2008).

O perfil pioneiro do historiador e crítico de arte José-Augusto França, assim como a investigação que desenvolveu sobre a cidade de Lisboa foram destacados pelo primeiro-ministro, António Costa, em reação à morte do investigador. “Historiador e crítico de arte portuguesa, autor de estudos pioneiros que continuam a ser obras de referência, José-Augusto França dedicou a sua vida à cultura. Era um notável olissipógrafo, que tive o privilégio de conhecer”, sintetizou o primeiro-ministro, na sua conta oficial no Twitter.

O presidente da Assembleia da República emitiu igualmente uma nota de pesar.

“Foi com sentido pesar que tomei conhecimento do falecimento, aos 98 anos, de José-Augusto França: Historiador, sociólogo e crítico de arte com vasta obra publicada, nomeadamente sobre a reconstrução da Baixa Pombalina — tema da sua tese de doutoramento na universidade de Paris, a Sorbonne — e sobre os maiores artistas portugueses do século XX, como Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros”, escreveu Ferro Rodrigues, numa mensagem enviada à imprensa

“Nunca se cansou de escrever e de viver, dando cumprimento a um programa de criação e vida que nunca traiu nem quis abandonar, como se respirasse em cada página, em cada livro, em cada cidade visitada, em cada tela estudada, em cada história narrada”, assinalou em 2015 o jornalista e escritor José Jorge Letria no livro José-Augusto França: Com o O’Neill Fala de Janela para Janela.

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Os seus escritos e tomadas de posição sobre movimentos artísticos da segunda metade do século XX fizeram dele um das vozes mais influentes no panorama da cultura portuguesa, especialmente no campo das artes visuais. Fez parte do grupo Surrealista de Lisboa  entre 1947 e 1949 (com António Pedro, Fernando de Azevedo, Marcelino Vespeira, Fernando Lemos e outros). De 1959 a 1964 viveu em França, com uma bolsa do governo francês, e aí escreveu La Lisbonne de Pombal (1965) e Le Romantisme au Portugal (1975).

“Têm vindo a ser confrontadas algumas linhas direcionais que José-Augusto França partilhou com os mestres que o formaram e com quem conviveu”, como “a superioridade da cultura artística europeia” ou “a dependência das artes dos países periféricos em relação aos grandes centros”, registou a historiadora Raquel Henriques da Silva no Dicionário de Historiadores Portugueses. No entanto, acrescentou, “a crítica, por vezes contundente de que a obra de José-Augusto França tem sido objeto, não põe em causa a excecionalidade do seu percurso e da sua obra, fundadoras da histórica da arte do século XX em Portugal”.

Apesar de conhecido como crítico, ensaísta e académico, publicou também obras de ficção, de que é exemplo Natureza Morta, romance de estreia, em 1949, onde abordou a escravatura em Angola. Foi o diretor da revista Colóquio Artes (1971-1996) e dirigiu o Centro Cultural de Paris (1980-1986). Presidiu ao conselho literário do Grémio Literário, em Lisboa, onde dinamizou diversas atividades culturais.

“A leitura das suas obras constitui uma oportunidade rara de conhecimento dos temas que tratou, desde a reconstrução da cidade de Lisboa após o terramoto até à exaustiva análise da Arte portuguesa dos séculos XIX e XX, uma vez que relaciona a sociedade e a vida, vendo a história como um conjunto global e compreensivo, tornando a sua apresentação apaixonante”, publicou no sábado à noite no Facebook o Centro Nacional de Cultura, de que França foi presidente. “Não é possível estudar qualquer um destes temas sem o conhecimento da completa investigação realizada pelo professor França, que é indubitavelmente a mais exaustiva e esclarecedora que se conhece sobre a matéria.”

José-Augusto França era casado, em segundas núpcias, com a historiadora de arte Marie Thérèse Mandroux. Ao longo dos anos, doou partes do seu acervo a diversas instituições, como o Museu Municipal de Tomar (uma coleção de arte contemporânea, em 2004) ou a Fundação Calouste Gulbenkian (milhares de textos da sua autoria, monografias e catálogos de exposições, em 1992).