A juíza Ana Paula Conceição foi direta ao ponto ao perguntar se os dois funcionários judiciais tinham feito algum acordo com ex-assessor do Benfica, fornecendo-lhe informações sobre inquéritos a troco de bilhetes e acesso privilegiado ao estádio. “Para não ser mal educado…”, começa por dizer o funcionário judicial Júlio Loureiro, para logo ser avisado pela magistrada: “Pois, isso não convém”. “Isto é pura fantasia”, respondeu.

Júlio Loureiro admitiu receber bilhetes para os jogos do Benfica, mas negou tê-los recebido como contrapartida para aceder a casos judiciais relacionados com o clube: “Não acedi a nada”. E negou também ter recebido qualquer benefício: “Nunca recebi benefícios. Absolutamente nada”.

O que explicou ao tribunal foi que os “convites para os jogos em casa na Luz, com pulseira e estacionamento” dados por Paulo Gonçalves não eram para si, mas para a sua filha. Isto porque tinha bilhetes para ele, mas se levasse a filha “precisava de outro” e esses já eram uma oferta do ex-assessor jurídico do Benfica — uma oferta que considera que “não tinha gravidade nenhuma”. Questionado pelo seu advogado, Rui Pedro Pinheiro, Júlio Loureiro explicou que, como observador de árbitros, tinha direito a convites para jogos. “Tinha e mesmo como jubilado continuo a ter”, disse, esclarecendo que os recebia e recebe não só para o Estádio da Luz, mas para outros. “Todos os clubes disponibilizam convites a magistrados, políticos, a polícias”, atirou.

Sobre a sua relação com Paulo Gonçalves, do Benfica, disse que se conheceram em jogos de futebol:

De vez em quando falávamos, trocávamos mensagens, falávamos por telefone, oferecia algumas coisas — contou.

Mas que coisas? — perguntou a juíza.

Caixas de vinho verde.

Mas o senhor não dá vinho verde a toda a gente? — perguntou a magistrada.

Dou a pessoas que considero amigas. É um hábito da minha terra.

O funcionário judicial foi confrontado, durante boa parte da manhã, com escutas telefónicas e mensagens trocadas pelos arguidos. Sobre elas, Júlio Loureiro disse que estavam “descontextualizadas”, tendo explicado algumas. Sobre outras, não falou porque não se lembrava. O arguido Júlio Loureiro é o único dos três que falou em tribunal para já e negou “toda” a acusação que lhe é imputada. Os restantes, o antigo assessor jurídico da SAD do Benfica Paulo Gonçalves e o funcionário judicial José Augusto Silva, recusaram prestar declarações nesta fase.

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Durante a tarde foi ouvido Bertino Miranda, vice-presidente do Conselho arbitragem FPF e assistente no processo. Contou ao coletivo de juízas que só teve conhecimento acerca dos alegados acessos dos oficiais de justiça a processos relacionados com o Benfica através da comunicação social. Também Vitor Alves, oficial de justiça que trabalhava com os dois arguidos, numa posição hierárquica superior, confessou ao tribunal que o caso “foi uma surpresa enorme quando soube o que aconteceu”.

Juízas recusam separar processo do caso e-toupeira e julgar um dos funcionários judiciais isoladamente

A resposta é não. O Tribunal de Lisboa recusou dividir o processo do e-toupeira em dois para, desta forma, julgar ex-funcionário judicial e arguido Júlio Loureiro num processo separado do principal. Mas as juízas anunciaram que só vão exigir que os arguidos, que não vivem na capital, estejam presentes nas sessões em que pretendem prestar declarações.

O coletivo de juízas, presidido pela magistrada Ana Paula Conceição — umas das juízas que está a julgar Rui Pinto —, explicou que “não existe fundamento legal” para a separação do processo já que há uma “manifesta ligação entre o crime de corrupção passiva e o crime de corrupção ativa“. Para o Tribunal, separar o processo iria traduzir-se “numa duplicação de julgamentos com prejuízo claro para a prova“.

O arguido Júlio Loureiro tinha pedido para ser julgado num processo separado do principal pelo facto de responder apenas pelo crime único de corrupção passiva, ao contrário dos restantes dois que respondem por dezenas de crimes.

O julgamento segue com sessões todas as quartas-feiras até início de novembro. Mas este caso ainda tem uma questão pendente que diz respeito ao local da realização do julgamento: um dos advogados de defesa pediu que fosse no Tribunal de Guimarães, mas os juízes do Tribunal de Lisboa recusaram — o que o levou a querer recorrer desta decisão para o Tribunal da Relação. Enquanto se aguarda uma decisão final sobre o local, o julgamento vai arrancar em Lisboa com o risco de poder ser anulado: é que, caso os juízes desembargadores decidam que afinal o julgamento deve realizar-se em Guimarães, todas as sessões realizadas até então podem ficar sem efeito.

Defesa quer dividir caso e-toupeira em dois e julgar um dos funcionários judiciais num processo isolado

Depois de cerca de um ano parado devido a recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo, o caso e-toupeira arranca assim na quarta-feira julgar três arguidos, depois de a juíza de instrução Ana Peres ter decidido não levar a julgamento a SAD do Benfica por nenhum dos 30 crimes que constavam da acusação. Nem o funcionário judicial Júlio Loureiro — decisão que acabaria revertida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Assim, vão ser julgados o antigo assessor jurídico da SAD do Benfica Paulo Gonçalves, pelos crimes de corrupção, violação do segredo de justiça, violação do segredo de sigilo e acesso indevido; o funcionário judicial José Augusto Silva vai responder pelos mesmos crimes, a que se junta ainda o crime de peculato; e o funcionário Júlio Loureiro pelo crime de corrupção passiva. De acordo com a acusação do MP, Paulo Gonçalves terá solicitado a estes funcionários judiciais que lhe transmitissem informações sobre inquéritos, a troco de bilhetes, convites e merchandising do clube.