O Governo pode executar os milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) mesmo entrando em 2022 sem um novo Orçamento do Estado aprovado. A execução da despesa associada aos projetos do PRR é “possível” porque o espaço para a despesa previsto no Orçamento em vigor “está empolado”, defendeu a especialista em Finanças Públicas, Maria d’Oliveira Martins na conferência sobre as propostas fiscais para o próximo ano, promovida pela sociedade Rogério Fernandes Ferreira & Associados.
Numa apresentação sobre “um orçamento inexistente”, no pressuposto de que a proposta orçamental para 2022 será chumbada, Maria d’Oliveira Martins referiu vários fatores de empolamento da despesa como os gastos aprovados para responder à pandemia, cuja necessidade será previsivelmente menor no próximo ano, mas também as cativações e as despesas que não foram realizadas como as associadas ao aumento de investimento público. A dúvida sobre a capacidade de execução do plano de recuperação foi suscitada por Marcelo Rebelo de Sousa quando revelou a intenção de convocar eleições caso o Orçamento não fosse viabilizado. Já esta terça-feira, o Tribunal de Contas alertou para o baixo nível de execução de fundos europeu.
O Governo, sublinha, “tem instrumentos de gestão flexível que permitem a execução orçamental”, mas dentro dos limites das linhas vermelhas fixados pela lei de enquadramento orçamental a qual qual define as alterações orçamentais que podem ser feitas sem passar pela Assembleia da República. Mesmo sem poder contar com a colaboração do Parlamento, o Governo pode usar a gestão flexível, desde que não ultrapasse os tetos de despesa de cada programa e organismo, que serão executados em regime de duodécimos. E mesmo aí pode haver margem para reafetação de fundos, desde que não entre na esfera de competências da AR.
Contribuições extraordinárias sobre banca e energia caem até novo orçamento
Do lado da receita mantém-se o quadro fiscal aprovado este ano — o aumento dos escalões de IRS fica sem efeito — mas a prorrogação não abrange as autorizações de cobrança de despesa para 2022. Por isso uma das consequências enunciada pela especialista é a queda das contribuições extraordinárias sobre vários setores, desde a banca até à energia, passando pela indústria farmacêutica e pela distribuição. Estas contribuições têm um regime diferente do de outros impostos e são aprovadas em cada ano através do Orçamento do Estado. Mesmo que o Governo pedisse agora uma autorização legislativa para as aprovar de forma autónoma, essa autorização cairia com a dissolução do Parlamento que o Presidente da República já anunciou no caso de chumbo da proposta de Orçamento do Estado. É um “beco sem saída” que só seria resolvido com um novo Orçamento apresentado pelo Governo que saísse das eleições. A especialista e professora da Católica considera que este hiato até pode ser uma oportunidade para se repensar o caráter extraordinário e temporário das contribuições setoriais que se tem eternizado ao longo do anos, como autênticos impostos.
Maria d’Oliveira Martins refere ainda que mesmo no caso em que Marcelo Rebelo de Sousa optasse por não dissolver o Parlamento e o Governo tentasse apresentar nova proposta, tendo em conta o circuito temporal de discussão e aprovação do documento, ele nunca estaria aprovado a tempo de entrar em vigor a 1 de janeiro.
Segundo a especialista, o Governo “aumentou como nunca os poderes de execução orçamental” nos últimos anos muito por força da pandemia, mas também graças às cativações e à não alteração do decreto de lei orçamental — o que está em vigor é de 2019 — e ao não avançar com a reforma da programação orçamental e da despesa pública lançada em 2015. E defende que é necessário repensar o equilíbrio entre a Assembleia da República e o Governo no que diz respeito aos poderes para elaborar o OE.
Joaquim Miranda Sarmento diz que consolidação das contas do Estado foi “ilusória”
Numa apresentação sobre um Orçamento alternativo, o economista e dirigente do PSD Joaquim Miranda Sarmento também alertou para as diferenças entre os orçamentos aprovados e os executados, nos anos em que os partidos à esquerda viabilizaram as propostas dos executivos liderados por António Costa. “Ficamos a saber que o que estava no Orçamento não era para cumprir”: a carga fiscal devia descer e depois subia, o investimento público crescia e depois continuava abaixo de 2015 e o reforço de fundos anunciado para os serviços públicos ficava cativo.
Para o presidente do Conselho Estratégico do PSD, Portugal não soube usar a “folga para corrigir o desequilíbrio das contas públicas” de que beneficiou durante os anos de “contas certas” do ministro das Finanças, Mário Centeno. Para Joaquim Miranda Sarmento a consolidação orçamental feita até 2019 não foi estrutural, mas sim nominal e “ilusória”. Segundo o economista, a política de compra de dívida pelo BCE que “anestesiou os mercados” e permitiu baixar os encargos com os juros da dívida e os dividendos e IRC pagos pelo Banco de Portugal (a partir dos lucros gerados com essas compras), explicam grande parte da descida do défice em percentagem do PIB conseguida entre 2015 e 2019. Por isso é que Portugal foi um dos países que menos gastos fez para apoiar a economia e as famílias durante a pandemia.
“Paradoxalmente,” a despesa primária entre 2019 e 2022 aumenta 3,6% pontos percentuais do PIB, mesmo retirando o efeito dos apoios extraordinários à economia e famílias e o aumento que é da responsabilidade do PRR não explica tudo. Com esta evolução que resulta do aumento da despesa do Estado, vai criar restrições para o futuro, sobretudo num quadro em que o BCE seja forçado a inverter a política monetária para conter a inflação.
Portugal também falhou a oportunidade para reconfigurar o perfil da dívida pública, atirando para mais tarde reembolsos, o que, considera, teria custos baixos, e dava mais garantias de manter abertas as condições de acesso aos mercados financeiros. E ficou por fazer a reforma estrutural que descreve como a mais importante, a da despesa pública, cujos instrumentos e procedimentos têm várias décadas.