Uma comunicação “pragmática e pensada”, que transmitiu urgência e “espírito de combate” ao momento pandémico, foi o elemento principal do sucesso da vacinação em Portugal, constatou esta quinta-feira, em Lisboa, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo. Na mesma entrevista, o militar diz que não tem “nada a ver com pré-campanhas eleitorais”.
Orador no almoço/debate “O processo de vacinação contra o Covid-19 em Portugal”, organizado pelo International Club of Portugal, o militar, adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado-Maior General das Forças Armadas, explicou, com detalhe, as operações da equipa responsável pela vacinação contra a Covid-19 que liderou entre 3 de fevereiro e 28 de setembro.
“A comunicação foi a parte mais importante”, realçou, perante uma centena de pessoas, recordando os reparos acerca de aparecer vestido de camuflado. “Queriam que aparecesse de lacinho cor-de-rosa ou com uma gravatinha? Eu sou militar”, ironizou, assumindo “a retórica de guerra”.
Liderança consentida e organização — acrescentou — são os outros dois elementos que compõem o trio de “sucesso” do processo de vacinação em Portugal.
A primeira — explanou — foi a que permitiu que instituições como a saúde e o poder local, com “valores e hábitos”, tenham consentido a liderança aos militares, percebendo a sua utilidade.
“Planos simples para execução rápida” é o que os militares “sabem fazer bem”, assinala.
Gouveia e Melo recordou que encontrou um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com “muitas fragilidades”.
O SNS “é muito partido e desestruturado”, bem como “regionalizado”, o que obrigou a criar “um sistema nervoso central”, explicou, acreditando que o sistema aprendeu com a experiência.
Havia que definir objetivos: “Defender as pessoas, que estavam em risco de vida” e dar resiliência ao Estado, nomeadamente ao SNS.
“Estávamos a vacinar em ‘slow motion’ [câmara lenta] e passámos a ‘fast forward’ [avanço rápido]”, descreveu, pedindo desculpas pelos anglicismos.
“Conseguimos fazer uma coisa bastante bem feita”, regozijou-se, rejeitando a perfeição, porque essa “só deus”.
Contando que “a imprensa estrangeira” tem andado a perguntar-lhe sobre “o truque” português, o vice-almirante respondeu: “Nunca gostei, enquanto português, que nos ajoelhássemos perante os outros povos. (…) Não temos de ter vergonha, nem orgulho excessivo.”
Portugal tem capacidades e “um dos truques foi a população portuguesa” e a “cultura pró-vacinas”, realça.
Segundo Gouveia e Melo, foco, capacidade de trabalhar na incerteza, disciplina, responsabilização e mobilização foram algumas das mais-valias que os militares trouxeram à coordenação da equipa que liderou o processo de vacinação.
O vice-almirante recordou o episódio em que um grupo de negacionistas o esperava com insultos à porta de um centro de vacinação e lhe sugeriu que entrasse pela porta dos fundos ou esperasse pela polícia. “Eu vou passar como um navio, com a sua proa, a empurrar toda a gente”, retorquiu, arrancando palmas à centena de pessoas na sala.
“Todos os malucos que acham que o vírus não faz mal” são também “inimigos”, apontou, sublinhando que é preciso “retirar margem de manobra aos negacionistas”.
“Serão todos forçadamente vacinados — ou pelo vírus ou pela vacina. Se quiserem esperar, façam favor”, disse.
“Não tenho nada a ver com campanhas pré-eleitorais”
“Sou um militar, fiz a minha função. E agora estou nas minhas funções anteriores militares, com muito gosto”, disse o vice-almirante quando questionado acerca de um eventual futuro político.
Já antes, no almoço/debate o militar tinha confessado, perante uma centena de pessoas, esperar não se “deixar cair na tentação” da política. “Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar”, pediu, com humor.
“Não tenho de preparar o meu papel [para um cargo futuro]. Eu sou um militar e o papel é o que me derem”, posicionou.
“A democracia não precisa de militares”, sublinhou. “Gosto muito de ser militar, mas o militarismo excessivo não faz sentido”, especificou.
Gouveia e Melo recordou ainda, com graça, quando começaram a referir-se à sua pessoa como “eventualmente presidenciável”.
Isso colocou-o “na arena política” e gerou uma “desfocagem do que era essencial”, que resolveu sendo “bruto” demais para ser candidato político. “Estratégia”, portanto.
Questionado também em relação às declarações de Paulo Rangel, candidato à liderança do PSD, que, em entrevista à RTP, na quarta-feira, lhe atribuiu o êxito da vacinação — e não ao Governo —, respondeu: “O êxito da vacinação deve-se a todo o povo português, no seu conjunto, desde população, ao Governo, à ‘task force’, aos enfermeiros, a todas as pessoas que participaram. Sem os portugueses não tínhamos conseguido atingir mais de 85 por cento de vacinação completa. Portanto, deve-se a toda a gente, não há exclusões, nem positivas, nem negativas.”
Sobre a situação pandémica, o vice-almirante considerou que “a ferida já não está aberta”, o que não impede que todos tenhamos de continuar a ter “cuidado”.
Sobre o momento atual, disse: “Só comento as coisas que me dão enquanto missão e já não é a minha missão.”
No que diz respeito à vacinação de crianças nos Estados Unidos, Gouveia e Melo frisou que “um país que tem 70 por cento de pessoas vacinadas precisa de aumentar a sua percentagem de vacinação”.
Ora, nesse caso, “se tiver que ir vacinar pessoas mais novas para o fazer vai tentar fazer isso, é uma estratégia racional”, opinou.
Mas o vice-almirante não vê esse cenário em Portugal, pelo menos para já. “Julgo que só se se chegar à conclusão que os 85, 86 por cento da população completa não foram suficientes”, sublinhou.
O importante, nesta altura, é saber que “a guerra global não está vencida” e é preciso “dar vacinas a quem precisa e não voltar a vacinar quem já não precisa”. E insiste: “Não há seres humanos descartáveis.”