De há uns tempos para cá, instalou-se no cinema (e não só no americano) o estereótipo de tirar a cor ao passado. Quanto mais distante no tempo se passa um filme, mais escura, descolorida e tristonha é a época retratada. E se for a Idade Média, é apresentada através de um filtro cinzento, como uma era quase a preto e branco. Trata-se de um perfeito disparate, como se a cor não estivesse tão presente nesse mundo como está no nosso, tal como se vê nas pinturas, tapeçarias e iluminuras do tempo, e tivesse, aliás, um forte valor simbólico, que se perdeu entretanto. Infelizmente, Ridley Scott volta a insistir nesse irritante e erróneo lugar-comum no seu novo filme, “O Último Duelo”, onde a França do século XIV banha no cinzentismo e parece viver em perpétuo Inverno.

Baseado no livro homónimo de Eric Jager, o filme fita recria um acontecimento real. O duelo até à morte travado em 1386, em plena Guerra dos Cem Anos, entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris, ambos da pequena nobreza, que tinham combatido juntos e sido grandes amigos, até se zangarem por questões de terras e poder. E sobretudo por Marguerite, a mulher de Carrouges, ter acusado Le Gris de violação. O duelo, que teve que ser autorizado pelo rei Carlos VI por já estar proibido na altura, era decidido por “julgamento de Deus”, ou ordália. Se Carrouges perdesse e morresse, era sinal divino que a mulher tinha mentido e ela seria queimada viva como punição; se ganhasse, Deus estava do lado do vencedor, ela tinha dito a verdade e a infâmia cairia sobre o derrotado.

[Ver o “trailer” de “O Último Duelo”:]

O argumento de “O Último Duelo” foi escrito a seis mãos. Por dois dos atores, Matt Damon e Ben Affleck, que interpretam, respetivamente, Carrouges  e o seu suserano, o conde Pierre d’Alençon, e pela argumentista e realizadora Nicole Holofcener. Cada qual é responsável por um dos três pontos de vista segundo os quais a história é contada, correspondentes aos de Jean de Carrouge, Jacques Le Gris (interpretado por Adam Driver) e Marguerite de Carrouges. O filme tem óbvios pontos de contacto temáticos e formais com “Às Portas do Inferno”, de Akira Kurosawa. Só que enquanto este, no final, não se decide por nenhuma das versões dos intervenientes, “O Último Duelo” diz claramente, e com toda a certeza, qual das três corresponde à verdade.

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Ridley Scott devia ter tido o mesmo cuidado na escolha do elenco como o que pôs na recriação da era medieval, não só materialmente como também das relações de poder e do seu quadro social, mental e intelectual, que hoje nos é distante e estranho. Matt Damon, Adam Driver e Ben Affleck são atores que, pela sua vincada americanidade e limitada competência dramática, só funcionam no seu tempo, estão restritos a uma determinada circunstância de lugar e época, e a um certo tipo de personagens. O monocórdico Damon, o parado Driver e o canastrão Affleck não têm pinga de credibilidade como nobres franceses do século XIV. Em “O Último Duelo”, a bota dos intérpretes não joga com a perdigota das personagens nem à lei da espada.

[Ver uma entrevista com Ridley Scott e Jodie Comer:]

No centro do enredo está a violação de Marguerite de Carrouges — associada ao facto das mulheres na Idade Média serem propriedade dos maridos — e, por extensão, a condição da mulher nesse tempo (o facto dela se ter queixado queixar e recusar ficar calada é mal visto por todos, incluindo as outras mulheres, mas a fita não diz que este era então um crime gravíssimo, que podia dar pena de morte). Nos tempos que correm, nos filmes e séries com histórias de mulheres, sobretudo os de época, vulgarizou-se o discurso da “opressão patriarcal” de longa data, bebido no feminismo radical e anti-masculino. Apesar de ser ambientado no século XIV, é este cliché “ativista” que “O Último Duelo” contempla. O filme pode passar-se há mais de 800 anos, mas o seu juízo retroativo e viés ideológico são contemporâneos.

[Veja uma entrevista com Matt Damon, Ben Affleck e Nicole Holofcener:]

Seria pedir demais a Hollywood, em vez de uma Idade Média onde a mulher é apenas submissa, passiva e vítima, um objeto que o homem usa a seu bel-prazer, que mostrasse uma era medieval em que, apesar de indesmentíveis e hoje impensáveis limitações e injustiças, ela era muito mais do que isso. Como se pode constatar na obra de uma ilustre historiadora e medievalista como a francesa Régine Pernoud, que em livros como La Femme au Temps des Cathédrales ou Luz Sobre a Idade Média, reduziu a pó toda uma série de mitos, simplificações e lugares-comuns sobre o estatuto de excluída, abusada e oprimida da mulher desse tempo.

[Veja cenas da rodagem do filme:]

Tudo espremido, o que fica de O “Último Duelo”? A autenticidade na reconstrução da época (menos o citado escamotear da cor e a meteorologia macambúzia), uma das qualidades de Ridley Scott, que vem desde o seu primeiro filme, “O Duelo” (1977); a interpretação de Jodie Comer no papel de Marguerite de Carrouges; aquele súbito e magnífico plano da Catedral de Notre-Dame em construção; e o duelo em si, reconstituído com rigor nos rituais e nas armas usadas, na ferocidade da violência e nas consequências para os dois contendores e a queixosa, e onde se manifesta o melhor Scott das batalhas e combates de “Gladiador” ou “Reino dos Céus”. E já agora, este esteve longe de ser o último duelo do género em França. Houve alguns mais, pelo menos até ao século XV.