Título: A Segunda Espada: Uma História de Maio
Autor: Peter Handke
Editora: Relógio d’Água
Tradução: António Sousa Ribeiro
Páginas: 112
O mais recente romance de Peter Handke, Prémio Nobel em 2019, chama-se A Segunda Espada: Uma História de Maio e está editado entre nós pela Relógio d’Água, com tradução de António Sousa Ribeiro. Pela voz do próprio protagonista, o livro conta a história de um homem possuído por um desejo de vingança, desde o dia em que decidiu levá-la a cabo até ao dia da sua concretização. O alvo é uma jornalista que, em tempos, terá difamado a “santa mãe” do narrador, sugerindo num artigo de jornal que ela fora conivente com o III Reich. Um ímpeto de justiça filial leva-o então a fazer uma viagem por zonas suburbanas da Île-de-France, a fim de se encontrar com a tal jornalista. Entre bares marginais, transportes públicos e uma sugestiva visita às ruínas de Port-Royal, vamos acedendo aos pensamentos do auto-proclamado “vingador”.
O leitor que esteja à espera de uma história clássica de vingança, com dois polos bem definidos em conflito e rechonchudas cenas de violência no centro da ação, será surpreendido. Handke atira-nos desde a primeira linha para um mundo ambíguo, do qual os mecanismos convencionais de representação dramática foram banidos; um mundo onde as fronteiras entre antropologia, jogo literário, comentário sociológico e humor negro nunca são nítidas, e onde as divagações de uma personagem avessa a qualquer tentativa rápida de catalogação nos deixa num estado permanente de sobressalto. “Para onde raio estamos a ir?” é uma pergunta que, não raras vezes, a leitura desperta.
Em parte, isso deve-se àquilo a que podemos eufemisticamente chamar a forte personalidade do narrador. Por um lado, ele tem um propósito muito pragmático de vingança, a que se somam mais umas quantas fantasias violentas. Por outro lado, uma queda pelo revolver dos pormenores, uma atenção maníaca às pessoas que o rodeiam, uma vocação livresca e reflexiva que se traduz, por exemplo, em descrições exaustivas das paredes da estação de comboio — e que talvez não seja o traço mais expectável em alguém que, percorrendo vales e montes, pretende limpar o sebo ao inimigo. O romance adquire assim a aspereza, a rugosidade, a profundidade desconcertante deste homem que é ao mesmo tempo voz e objecto da narrativa. Pelo carácter marginal dos seus comportamentos, pelas considerações nunca banais que os lugares lhe vão despertando, é difícil não ficarmos presos à sua história. O modo como o mês de maio vai sendo referido na narrativa (maio é, por excelência, o símbolo literário do esplendor da vida) dá também o seu contributo para o festival de mistério que se desenrola à nossa frente.
Dito isto, a estranheza encantatória que emana do romance não advém apenas do perfil do protagonista. Deve-se também à ousadia de Handke, que parece querer replicar na forma da narração, não apenas as idiossincrasias da sua personagem principal, mas alguns aspetos fundamentais da ótica cambaleante e confusa a partir da qual vivemos a vida.
No fim da introdução a Sobre a Democracia na América, Tocqueville escreve o seguinte:
“(…) se por vezes é necessário, nas acções, afastar-se das regras da lógica, não se poderá fazer o mesmo nos discursos; e o homem encontra quase tantas dificuldades a ser inconsequente nas palavras como as que por norma encontra para ser consequente nos seus atos.”
O ponto relevante aqui é que há uma tendência para, através da recapitulação linguística da experiência, arredondarmos as pontas da vida vivida — dessa vida que, como se sabe, está cheia de esquinas bicudas e fantasmas incompreensíveis. A tal tendência “arredondativa” do discurso está ligada à natureza da linguagem. Mas também tem origem na nossa vontade. Há nos nossos pobres corações estilhaçados um anseio pela harmonia do sentido. Embora as vivências nem sempre encaixem com facilidade nos modelos teóricos em que gostaríamos de as encerrar de uma vez para sempre, a reconfiguração discursiva do sentido é possível; e, entre os consolos disponíveis, um consolo nada despiciendo.
Ora, a opção arrojada de Handke está em sabotar essa tendência reconfortante da linguagem — a de aplanar o sentido das coisas, harmonizando tudo em narrativas mais ou menos simples e esquecendo os solavancos com que ele costuma ser vivido — mediante um vai-e-vem de pensamentos que se sucedem de forma surpreendente, por vezes contraditória, quase sempre confusa. Uma forma que desafia a suposta transparência do nosso próprio acesso à realidade. Tudo isto, já patente no modo como o narrador se expressa, é ainda sublinhado por reflexões explícitas sobre a instabilidade da sua perspetiva:
“Normalmente, sempre que se formara em mim na primeira metade da noite uma resolução como que irrevogável ou uma certeza indubitável, o despertar, fosse à luz do dia ou, com muito mais frequência, já na segunda metade da noite, punha tudo de novo em questão. E não apenas isso: o que, na véspera, pensara, vira com clareza, soubera, decidira inapelavelmente, revelava-se ao que era arrancado do sono à pancada, de um só golpe, desferido por um punho gigantesco, como uma idiotice pegada; sem sentido e, além disso, uma impertinência, um sacrilégio, o ‘pecado mortal da soberba’.”
Do início ao fim, o texto está cheio de setas a apontar para as fragilidades do nosso olhar. A repetida referência à ideia de que a visão do narrador sobre isto ou aquilo decorre de decisões, e decisões intempestivas tomadas no calor da sua impaciência, é um exemplo. Outro recurso utilizado com o mesmo intuito é o diálogo interior — uma constante ao longo do livro, que reflete um ponto de vista sempre gaguejante, nunca seguro o suficiente para se estabelecer numa visão definitiva sobre os objetos considerados. Mas, no meio do arsenal mobilizado por Handke contra a pretensão de dominarmos muito bem o que se passa aqui, destaca-se sobretudo o poder da imaginação. Várias vezes insinua que são determinações imaginárias que guiam o homem. Lemos a certa altura que “Os factos não conseguiam beliscar a ilusão”; e o narrador confessa mesmo, depois de ter usado o termo ‘fantasia’ várias vezes, que ela é “uma das minhas palavras centrais”.
É, porém, na visita às ruínas de Port-Royal e na consagração de Pascal como figura tutelar que percebemos como o romance se presta a ser lido, todo ele, sob esta ideia geral: a de que o homem é servo dessa faculdade insidiosa e destravada que é a imaginação. Handke evoca explicitamente o fragmento Lafuma 44 dos Pensamentos, no qual o grande pensador francês afirma que “a razão bem pode gritar, ela não é capaz de dar o preço às coisas” e que é a imaginação quem tem “o grande direito de persuadir os homens”. Mais do que a história de um vingador, A Segunda Espada é a história de uma fantasia humana particularmente grotesca, também pela auto-consciência que o protagonista mostra a respeito disso mesmo.
Não será injusto dizer que, no fim de contas, o romance fica um pouco aquém daquilo que uma elaboração tão engenhosa e tão exigente promete. No entanto, Handke oferece-nos várias passagens que têm aquela capacidade, própria da grande arte, de renovar a forma como vemos. Entre essas passagens, algumas apresentam imagens muito fortes: a voz feminina no comboio que “salmodiava” os nomes das estações; o homem que, de noite, caminha sobre o risco central da estrada interurbana; a rapariga estrangeira que “resplandecia — nem uma réstia de esperança, também nada de entrega ao destino e muito menos nenhum ‘aguardo a minha morte com ansiedade’ — resplandecia ao ver a outra criança.” Outras das melhores passagens correspondem a reflexões que, de uma maneira ou outra, provocam o nosso modo sonâmbulo de pensar, e nos fazem repetir o desabafo do narrador já depois de ter avistado o seu alvo: “Santa barafunda”.