Com as eleições marcadas, a estratégia socialista começa a delinear-se e o caminho de entendimentos à esquerda já não é o único defendido no topo do partido. Ao Observador, o presidente do PS, Carlos César, afirma que o partido “não exclui, ambiciona mesmo, consensos partidários e sociais mais vastos e mais densos”. O tema não é pacífico no PS que nos últimos seis anos se manteve no poder apoiado no Parlamento numa maioria de esquerda que incluía PCP e Bloco de Esquerda. Mas, no atual quadro político, há uma frente mais moderada que abre agora caminho para o outro lado do hemiciclo.
“É natural que o PS, perante as exigências do atual momento político, se projete defendendo um diálogo transversal, com e para além dos partidos“, afirma Carlos César que justifica o realinhamento do discurso com a decisão do Presidente da República comunicada na última quinta-feira. “A marcação de eleições é como um novo ponto de partida. Umas coisas reconfirmam-se, outras adaptam-se e outras alteram-se“, acrescenta o presidente do partido que é um dos principais conselheiros do líder António Costa.
Ainda este domingo, numa entrevista à TSF e ao Jornal de Notícias, o histórico socialista Manuel Alegre mostrou-se desagradado com a forma como foi chumbado o Orçamento do Estado para 2022 e defendeu que, no futuro, se olhe não só à esquerda, mas também à direita.
Alegre — que foi um apoiante convicto da aproximação do PS à esquerda — diz agora que é preciso fazer o “luto” da ‘geringonça’ e ataca frontalmente a esquerda dizendo “que alguns não saíram nem da Revolução de Outubro, nem do assalto ao Palácio de Inverno, nem da consideração do Partido Socialista como inimigo principal e dessa maneira é muito difícil fazer entendimentos que tenham uma base sólida e que sejam de grande estabilidade”.
Carlos César já é um reconhecido atirador aos partidos da esquerda à esquerda do PS e, durante as delicadas negociações do Orçamento, foi a primeira voz socialista de peso a vir a terreiro criticar PCP e Bloco de Esquerda. Fê-lo logo a 21 de outubro, ao criticar a postura de “incompreensão e de arrogância” da esquerda no processo negocial e continuou dias depois, ao considerar que “só por magia negra” a esquerda poderia voltar a entender-se para viabilizar o Orçamento.
Agora não atira aos ex-parceiros do PS, mas defende que o caminho do partido tem de ser o do “diálogo” esse “é o alicerce de qualquer procura de estabilidade, que está ao alcance do PS, como partido que congrega o eleitorado moderado da esquerda, ou, se se preferir, do centro-esquerda“. Mas esse diálogo tem de ir além da esquerda, acrescenta. “O PS é um partido que privilegia, ou tem privilegiado, o entendimento à esquerda, mas que não exclui, ambiciona mesmo, consensos partidários e sociais mais vastos e mais densos”.
Na última reunião do secretariado nacional do PS, foi discutida a estratégia que o partido deveria seguir no atual quadro de eleições antecipadas e, nesse encontro, falou precisamente da necessidade de recentrar o discurso, apontando o PS ao centro político e à classe média, incluindo os empresários, mas sem hostilizar os partidos à esquerda, tal como escreveu o Observador na passada quarta-feira.
Costa pondera não apresentar programa eleitoral novo. PS aponta ao centro sem hostilizar esquerda
A posição não é única no partido em que Pedro Nuno Santos tem uma forte influência ao nível do aparelho e é um dos principais defensores dos acordos à esquerda e da “geringonça” (de que foi o pivot no Parlamento durante praticamente todo o primeiro Governo de António Costa). Ainda na semana passada veio reafirmar isso mesmo ao dizer que “esta solução funcionou”. “Sei que isso incomoda muito a direita, mas vão ter de se habituar porque não foi um parêntesis na história da democracia portuguesa” — uma formulação antiga do socialista que já a tinha usado numa iniciativa da JS no início deste ano, era a crise política uma miragem.
Os seus mais próximos juram a pés juntos que a reedição dessa frase nesta altura não se tratou de um contraponto à linha de Costa que, dias antes no Parlamento, tinha apontado o partido ao objetivo de uma maioria absoluta ao pedir a já famosa “maioria estável, reforçada e duradoura”. Mas é certo que Pedro Nuno, que já defendeu publicamente que “o centro se ganha à esquerda“, não é um apoiante interno da linha mais centrista do PS que esteve estrategicamente discreta durante os últimos anos.
Em 2020, numa entrevista a Expresso, António Costa deixava mesmo a direita à distância da forma mais veemente: “No dia em que a subsistência deste Governo depender de um acordo com o PSD, nesse dia este Governo acabou.”
O caminhou estreitou-se à esquerda e, também esse, acabou por deixar de ter uma saída que não a das eleições antecipadas. Ou nas palavras do presidente do partido ao Observador: “A marcação de eleições é como um novo ponto de partida. Umas coisas reconfirmam-se, outras adaptam-se e outras alteram-se.”
PS quer cedências à esquerda a entrarem no programa eleitoral
Agora, no terreno o PS prepara-se para um discurso de duas cabeças, com parte do partido a defender que não se cortem as pontes com a direita — num piscar de olho ao decisivo eleitorado do centro –, e outra parte a insistir nos méritos do caminho da “geringonça”. A estratégia não é muito diferente da de 2015, em que António Costa saiu para o terreno com uma moção aprovada em congresso (em 2014) onde lançava a reconfiguração do arco da governação, chamando os partidos à esquerda do PS. Mais tarde havia de afirmar esse como o momento definidor da ‘geringonça’, mas na campanha de 2015 Carlos César e também Augusto Santos Silva não se pouparam nos ataques a PCP e Bloco de Esquerda com quem o partido se acabou, depois, por entender.
Seja qual for o caminho, há uma linha que o PS entende que deve ser seguida nesta altura e que passa pela inclusão no compromisso eleitoral para as legislativas antecipadas das medidas que saíram da negociação à esquerda. A decisão final caberá a António Costa — que esta noite dará a primeira enrevista pós-chumbo, na RTP –, mas no partido esse tem sido um caminho defendido até publicamente.
Duarte Cordeiro, atual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (e muito próximo de Pedro Nuno Santos) defendeu, numa entrevista à Rádio Renascença e ao jornal Público, que “a partir do momento em que avançamos com um conjunto de disponibilidades não faz sentido o PS recuar sobre aquilo que se dispôs a fazer”. “Até para as pessoas perceberem que somos consequentes com aquilo que vamos negociando e que estamos de boa-fé quando negociamos”, notou o secretário de Estado. Duarte Cordeiro falava precisamente das cedências que o próprio António Costa tornou públicas, numa reunião da Comissão Política Nacional do PS.
Não é o único a defendê-lo. Ao Observador, um alto dirigente do partido diz que esse “deve” ser o caminho a seguir. “O PS assume por inteiro a proposta de Orçamento”, acrescenta ainda mais um dirigente socialista. “O PS não se desmente a si mesmo. A partir do momento em que assumiu essa disponibilidade, não a vai tirar de cima da mesa”, aponta outro dirigente.
Só que essas medidas não constam da proposta que foi entregue (e chumbada) no Parlamento. “Pois não, mas estão validadas pelo PS na reunião da Comissão Política Nacional”, recorda a mesma fonte. E foi esse mesmo órgão político que avaliou e validou as medidas como antecipação para 1 de janeiro de 2022 o aumento extraordinário das pensões (que na proposta de Orçamento estava só a partir e agosto), o alargamento só aumento extraordinário a todas as pensões com valor até 1.097 €, o fim do fator de sustentabilidade nas reformas a partir dos 60 anos para todos os indivíduos com mais de 80% de incapacidade durante pelo menos 15 anos, o aumento extraordinário do Mínimo de Existência em 200 euros, abrangendo mais cerca de 170 mil pessoas com isenção de IRS.
Entre as propostas estava também uma nova trajetória de atualização do salário mínimo nacional que, já na data dessa reunião (ainda antes do chumbo do Orçamento) já apontava para o tempo de uma legislatura a arrancar em 2022, como acabou mesmo por acontecer. O plano do PS que tencionava deixar funções em 2023 era chegar aos 750 euros nesse ano, aos 800 euros em 2024 e 850 em 2025 — este é o ano do fim do mandato do Governo que vier a vencer as legislativas de 30 de janeiro.