Para Lina e Raül Refree, o fado não tem de andar sempre num eixo de regra rígida, sem se desviar um milímetro da sua mais tradicional forma. A dupla tem um entendimento diferente, acredita que talvez o destino do fado possa ser outro, com recurso a teclas, sintetizadores, com mais tempo e liberdade, sem desvirtuar a base, mas dando-lhe um novo rumo. E a guitarra portuguesa, onde fica? Também lá está. Agora, depois de um álbum de estreia (Lina_Raül Refree, lançado no ano passado) muito bem recebido tanto fora como dentro, depois de distinções nacionais e internacionais — e do Prémio Carlos do Carmo atribuído no início deste ano –, após cerca de 30 concertos só este ano (ainda muito atípico, relembremos), o duo luso-catalão volta ao Misty Fest, o palco que lhes deu a estreia nacional em 2019.

Antes da pandemia irromper pelo mundo inteiro, a fadista, residente há mais de 15 anos no Clube de Fado, já com dois álbuns lançados — Carolina (2014) e EnCantado (2017) — e o produtor catalão, que participou na criação do boom musical de seu nome Rosalía (com o álbum de estreia Los Ángeles) juntaram-se num estúdio. Não se conheciam. Sem problema. Pegaram no reportório de Amália Rodrigues, mais um tema de António Variações e num fado de Alfredo Marceneiro, e trabalharam 20 canções, todas bem ligadas à “ideia de espiritualidade”. Venham de lá as teclas, venham de lá os sintetizadores, os silêncios, tudo. E assim foi. Até porque essa estranheza, que o duo quer manter, aceita-se bem, até ser família.

Entretanto, já com a carruagem a andar, a relação foi fluindo, para que Raül conseguisse elevar a voz de Lina dentro de um ambiente eletrónico sem que o fado se perdesse. Só não há guitarra portuguesa, a “velha amiga” desta tradição musical. Quer dizer, não há? Não é bem assim. “A intenção dessa pergunta é outra: se sinto falta da guitarra quando estou com o Raül? Na verdade, eu ouço-a. O papel deste instrumento é acompanhar, seguir a voz, responder, dar apoio. E ele faz isso bem, é muito cuidadoso com a minha voz. Cada palavra que canto, ele ouve. Só assim é que se consegue subir ao estado mais elevado da música”, começa por contar Lina ao Observador.

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E o músico catalão conseguiu ainda outra coisa: dar mais liberdade temporal à fadista. É que quando Lina volta para uma qualquer casa de fados, a guitarra “tem o tempo imposto” e isso pode atrapalhar. Aqui não. “Por vezes não consigo expressar bem a palavra, talvez se tivesse mais espaço para cantar, se não houvesse tanta informação, parece que se perde a importância do que está a acontecer, da palavra. E isso para mim é que é o mais importante: o poema”, afirma.

Ora, já o produtor catalão, que só conseguiu responder às perguntas do Observador à distância por estar em gravações para um novo projeto, gosta mais de olhar para a relação que foi capaz de construir com o fado, através de Lina, que, à primeira vista, podia parecer tão rígido na tradição como o flamenco, mas que depois se foi tornando cada vez mais fluído. “Depois de todos os concertos que demos, a forma de entendermos a música tornou-se mais clara, é mais fácil conectar com o cenário, desenvolver novas paisagens, sem o medo de nos perdermos no infinito da improvisação”, conta. Agora, Raül Refree já conhece bem “os silêncios” de Lina, sem os interromper, já sabe para onde ir a fim de mudar a agulha emocional de uma canção durante o concerto. E já sabe que o concerto desta segunda-feira não será igual aos anteriores. Até porque isso “o aborrece”. Mas já lá vamos.

“O que aprendi com o Raül é para manter, não quero recuar”

Essa fascínio do catalão pelo improviso podia ter assustado a fadista portuguesa. Afinal, e ainda que alguns dos seus pares já lhe tenham dado os parabéns pelo novo projeto, mesmo que, aqui e ali, com as tradicionais reticências — “temos esse problema cá, o de não reconhecer o trabalho do outro” –, Lina, que estudou teatro e cantou ópera, que nasceu na Alemanha mas cresceu em Trás-os-Montes, foi formatada pelo fado tradicional. Não fosse Amália Rodrigues uma das suas maiores referências. Não fosse Amália Rodrigues a razão para que Lina tivesse ficado trancada no quarto, aos 15 anos, a ouvir todos os discos. Todas as palavras. Uma a uma. E a querer saber o significado e o peso do que estava a ouvir. Não precisou de muito tempo, afinal, para mandar embora esse desconforto de um novo início. “Acabou quando fomos para estúdio logo no primeiro dia. Agora é algo que gosto muito de fazer, porque o Raül abriu-me a janela para fazer o que gosto. Até porque partilhamos muito durante as criações, é uma relação muito saudável. E o que aprendi com ele, quero manter. Não quero recuar. E ter o mesmo espaço para cantar”, diz.

Espaço, tempo, silêncios, contexto eletrónico, voz poderosa a surfar a meditação, sem amarras. É isto que vamos ouvir esta noite, pelas 21h00, no Teatro Maria Matos, em Lisboa? Sim e não. “Cada concerto é diferente, é realmente diferente. A mim afeta-me muito o espaço onde estou, a temperatura, o meu estado de ânimo, tudo. É impossível interpretar canções da mesma maneira, tal como aconteceu na noite anterior. Se tentarmos repetir o que correu bem num dia, é possível que não funcione noutro porque, entretanto, muita coisa mudou”, conta Raül Refree. Misterioso, mas compreensível.

Talvez Lina tenha algo mais concreto para adiantar sobre esta noite. Primeiro, o espetáculo volta a ser encenado por António Pires, com um alinhamento fixo e um desenho de luzes específico para este concerto. Mas claro, é verdade, os espectáculos nunca são mesmo iguais. “Há pormenores que se descobrem, a interpretação e o estado de espírito são diferentes. É muito improvisado. A base melódica está lá, mas o Raul depois faz coisas maravilhosas”, argumenta.

Afinal, é mesmo preciso ir ver. Entrar no tal convite para uma viagem que deixe “a cabeça vazia”, livre de amarras, para atingir o “estado puro da música”. Quanto a 2022, com uma quinta vaga da pandemia de Covid-19 no horizonte, e já com o setor da cultura a regressar a dias de dúvidas, o duo luso-catalão, tal como aconteceu este ano, já tem uma série de concertos marcados. Uma tour pela Alemanha e pela Bélgica, mais uma estreia em Londres. E talvez um álbum novo. “Estamos a pensar nisso”, chuta Lina. Quanto à sua carreira a solo, é “para reconstruir”. Nada mais a acrescentar. Até porque não tem medo nenhum de arriscar, reforça. “Gosto de agarrar os desafios que me aparecem. Já se perderam grandes talentos porque as pessoas têm medo de arriscar, porque têm medo da crítica. Não tenham”, termina.