Alguns chamavam-lhe “a rainha do cool” do Novo Jornalismo — forma livre, desempoeirada, “analítica” e muito pessoal, quase ensaística (nunca consensual, nunca isenta de críticas), de exercer a atividade da escrita jornalística. Tom Wolfe, que em 1973 decidiu agrupar vários jornalistas-escritores em que observava um estilo de escrita que rompia com o dominante, viu-a assim: como autora de um jornalismo novo.
Joan Didion, porém, nunca se prendeu a uma só escola estética de escrita, a um movimento delimitado (fosse qual fosse) e a regras circunscritas e coletivas que ditassem modos certos de escrever. Nem sequer a um papel apenas, profissional ou não. Foi sempre uma figura ímpar, uma escritora com regras próprias que de há uns anos para cá passara de autora de culto a autora reconhecida, relativamente popular na cultura norte-americana. Cool, lá está, a ponto de passar a ser vista como ícone de moda. Morreu esta quinta-feira, aos 87 anos.
A notícia é avançada por várias publicações norte-americanas, como o jornal The New York Times. O diário detalha a causa da morte, citando um e-mail enviado por um executivo (Paul Bogaards) do grupo editorial que publicava Didion, o Knopf: a escritora sofria de Parkinson, tendo sido complicações associadas à doença a provocar a morte.
Nascida em Sacramento, no estado da Califórnia, a 5 de dezembro de 1934, Joan Didion cresceu rodeada de livros, usando a literatura como refúgio para a timidez e lendo avidamente, em especial Ernest Hemingway, autor que estudaria de forma minuciosa, crítica e apaixonada.
A minúcia que empregava nas leituras era semelhante à que empregaria na escrita. No texto “Porque escrevo”, publicado a 5 de dezembro de 1976 no The New York Times, fazia questão de explicar o quão consciente estava de que cada componente de cada frase — e cada escolha feita de palavras a utilizar e relativa à forma de as organizar — era determinante para a correta expressão de ideias:
Mudar a estrutura de uma frase altera o significado dessa frase, tão definitivamente e inflexivelmente como a posição de uma câmara altera o sentido do objeto fotografado. Muitas pessoas estão agora a par da importância dos ângulos das câmaras mas são menos os que estão a par da importância das frases. O ‘arranjo’ das palavras importa e o ‘arranjo’ que queres pode ser encontrado na imagem que tens na cabeça. A imagem dita o ‘arranjo’. (…) A imagem diz-te como ‘arranjares’ e combinares as palavras e esse arranjo e combinação diz-te, ou diz-me, o que está a acontecer nessa imagem.”
Joan Didion começou por trabalhar e escrever na revista Vogue, depois de uma licenciatura na Universidade da Califórnia, Berkeley e após ter-se destacado num concurso universitário de escrita de ensaios, patrocinado precisamente pela revista que assim identificava e recrutava talentos. Esteve na Vogue durante sete anos, subindo hierarquicamente com o passar dos anos e ganhando reconhecimento pelo trabalho de investigação e escrita. Publicaria mais tarde nas revistas Life, The Saturday Evening Post e The New York Review of Books, entre outras.
Paralelamente aos textos jornalísticos, e muito antes de Tom Wolfe ter notado numa série de autores norte-americano da sua época algumas características comuns que identificou como traços de um “novo jornalismo”, Joan Didion começou a publicar livros.
O primeiro, Run, River, editou em 1963, quando tinha 29 anos. Muitos outros (mais concretamente, 18) seguiram-se, quer romances de ficção (Play It as It Lays em 1970, A Book of Common Prayer em 1977, Democracy em 1984 e The Last Thing He Wanted em 1996) quer sobretudo obras de não-ficção, na sua maioria coletâneas de textos publicados na imprensa: de Slouching Towards Bethlehem, 1968, e The White Album, publicado onze anos depois, a O Ano do Pensamento Mágico, livro editado nos Estados Unidos em 2005 sem o qual seria impossível explicar o aumento do reconhecimento mundial da sua obra na última década e meia.
O impacto desta obra, O Ano do Pensamento Mágico, uma das poucas de não-ficção que não se alimentava de textos publicados previamente em revistas e jornais, pode ser visto sob diversos ângulos, ou por diversas réplicas desse abalo literário. Por um lado, o reconhecimento da crítica e os prémios: o livro foi finalista do Pulitzer e motivou a distinção da autora com um National Book Award. Por outro lado, o interesse na obra levou até à adaptação para teatro e para a Broadway, com o envolvimento próximo de Joan Didion no processo.
Ao interesse gerado no livro e à popularidade granjeada posteriormente por Joan Didion, que se transformou de escritora e jornalista de culto em figura proeminente da cultura popular norte-americana (com os seus escritos e retratos de época sobre os anos 60, o movimento hippie e a vida em Hollywood a serem descobertos tardiamente por muitos leitores), não será alheio o “tema” de O Ano do Pensamento Mágico.
No livro, profundamente pessoal e emocional (mais do que emotivo), a jornalista e escritora viajava pelas memórias e pelos dias de 2004, o ano posterior à morte de John Gregory Dunne, seu antigo marido e homem com quem se casara em 1964 e com quem ficara até se tornar viúva, em 2003.
O contexto em que o livro foi publicado foi ainda mais trágico: a publicação aconteceu pouco mais de um mês depois da morte de Quintana Roo Dunne Michael, filha adotiva de Dunne e Didion que morreu a 26 de agosto de 2005 com apenas 39 anos. A causa da morte foi uma inflamação aguda no pâncreas. Há dez anos, em 2011, o grupo editorial Knopf publicava Noites Azuis, livro de memórias de Joan Didion com reflexões sobre o envelhecimento, a adoção e a relação com a filha adotiva que morrera seis anos antes.
Joan Didion (1934-2021) e a escrita como estratégia de sobrevivência