O cirurgião de Évora investigado por alegada recusa de helitransporte do INEM a três doentes em estado grave, em 2017, foi suspenso pela ordem dos Médicos em maio, mas António Peças continua a negar qualquer falha ética ou deontológica num caso que, como o Observador já havia noticiado, levou o Ministério Público a abrir um inquérito. No processo da Ordem dos Médicos (OM), a que o Observador teve acesso, a relatora Maria do Céu Machado também se refere ao episódio da duplicação das folhas de serviço —  que colocavam o clínico, no mesmo dia, à mesma hora, no Hospital do Espírito Santo, de Évora, e no INEM — para justificar a suspensão, de um ano.

Em sua defesa, o “médico arguido”, como é referido pelo seu advogado na contestação, insiste “que não foi praticada qualquer infração disciplinar que possa ser censurada pela OM”. Na peça processual , que também chegou à redação do Observador, o defensor cita o n.º 4 do artigo 4 do Código Deontológico dos Médicos, para alegar que, “no exercício da sua profissão, deve e na medida que tal não conflitue com o interesse do seu doente, proteger a sociedade, garantindo um exercício consciente, procurando a maior eficácia e eficiência na gestão rigorosa dos recursos existentes.”

Ministério Público investiga médico do INEM de Évora

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Declarando ser “falso que o médico tenha recusado, sem justificação, proceder ao transporte de doentes”, a defesa ainda recorre ao artigo 4.°, n.° 9 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos para sustentar que “o médico deve ter comportamento público e profissional adequado à dignidade da sua profissão, sem prejuízo dos seus direitos de cidadania e liberdade individual.”

Estávamos em outubro de 2017 quando o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) acionou o helicóptero do INEM para transportar um homem de 74 anos que dera entrada no serviço de urgência, com um traumatismo craniano e hemorragia cerebral. “Se puderem fazer isso por terra, eu agradeço-lhe muito”, respondeu o então médico de serviço, António Peças, alegando uma gastroenterite. O transporte acabaria, efetivamente, por ser feito por via terrestre.

Mas uma carta anónima de “um grupo de médicos preocupados”, viria a colocar o cirurgião, naquele dia, numa tourada, na arena de Évora, onde até terá socorrido o diretor da corrida. Antes, em 2017, já teria deixado em terra um idoso de 82 anos que sofreu um AVC, durante a madrugada. Além disso, no mesmo ano terá havido também atrasos na chegada do helicóptero ao Hospital de Faro, por resistências do mesmo clínico, em transportar por ar para Lisboa uma paciente de 37 anos, vítima de um aneurisma — e que acabaria por morrer.

Médico do INEM disse que estava indisposto e não transportou doente. Denúncia diz que estava numa tourada

Ordem: “Parece ter pensado mais na sua comodidade do que no interesse dos doentes”

Praticamente dois anos depois de o caso ter vindo a público, a OM acabou por concluir em maio de 2021 que o comportamento de António Peças viola os deveres clínicos: “O médico parece ter pensado mais na sua comodidade pessoal do que no interesse dos doentes, revelando uma enorme indiferença pela saúde destes, ou na melhor das hipóteses, uma flagrante incapacidade para avaliar a gravidade do estado dos doentes.”

A braços com processos disciplinares do INEM, da Inspeção Geral da Saúde  (IGAS) e com o inquérito criminal desencadeado pelo DIAP de Évora, o médico também contraria o cenário da duplicação das presenças, questionando a autoridade da OM para lhe aplicar uma sanção por um “incumprimento contratual (quer perante ao Hospital de Évora, quer perante o INEM)” e não por um “incumprimento dos deveres deontológicos”.

No despacho da suspensão, a própria relatora da OM assume que a IGAS afirmou que “não foi possível concluir com toda a segurança quais os registos de assiduidade que não correspondem à realidade, sendo certo que a falta de registos clínicos em alguns períodos registados pode ser indicador mas não assegura, sem margem para dúvidas, de que se trata de um registo de assiduidade falso”.

De qualquer forma, a Ordem também dá como provado que, “até 1 de outubro de 2018”, António Peças “procedeu ininterruptamente ao registo da assiduidade em folhas manuais, recusando-se a usar o sistema de registo biométrico (…) por considerar que o mesmo violava a legislação referente à proteção de dados”. Registos, que o Diretor de Serviço de Cirurgia Geral nunca reconheceu e que, portanto, serão mais difíceis de provar. “Ou o médico mente e não trabalhou no Hospital de Évora, (…) ou esteve nas instalações, praticou atos médicos e não os registou”, conclui a relatora da OM. Caso venha a provar-se, a sobreposição de horários pode consubstanciar uma “infração disciplinar, se não criminal, por eventualmente indicar falsidade intelectual dos documentos”, prevê a IGAS.

O Observador tentou obter uma reação de António Peças à decisão da Ordem dos Médicos, mas o clínico não respondeu até à publicação deste artigo.