As condições para um comício particularmente efusivo do Bloco de Esquerda estavam, esta quarta-feira, reunidas. Ingredientes: a presença do terceiro fundador vivo em três dias, neste caso Fernando Rosas; o terreno em que jogava, a sala de espetáculos no Incrível Almadense, na “terra de resistência” de Almada; uma sessão de ataques à direita com gritos de “não passarão”; e, a acabar, uma previsão de Catarina Martins que faz lembrar a velha – ou uma nova? – geringonça.
Foi aliás Catarina Martins que acabou o discurso quase rouca, já com a plateia aquecida depois da intervenção do fundador Rosas. Fórmula vencedora: bater na direita, como Bloco tem feito de forma cada vez mais agressiva nos últimos dias, acusando-a de “surgir pintada das cores mais modernas que consegue imaginar e no entanto em tudo o que inventa vem o velho, com barbas de quarenta anos” e um programa “velho, caduco”, que não responde às necessidades do eleitorado mais jovem, o que se mobiliza em lutas contra o racismo ou as alterações climáticas.
Conclusão: a direita não tem uma “maioria social” – essa está com a esquerda e é preciso que vá votar e se transforme numa “maioria política pelo progresso”.
Depois, atirou a frase que pode vir a tornar-se mais relevante a partir de domingo. Se Joana Mortágua, cabeça de lista por Setúbal, tinha falado de cenários eleitorais “independentemente de quem se autoproclamar primeiro-ministro no dia das eleições”, Catarina falou na mesma linha e sentenciou: “Qualquer que seja o mais votado, a direita terá menos deputados. Resta saber se o diálogo [do PS] será com PSD ou Bloco de Esquerda”.
É a fórmula com que nasceu a primeira geringonça – mas se houver segunda, como pareceu admitir, já não será com António Costa, que anunciou que se demitirá se perder as eleições, à frente do PS. E o sucessor mais bem colocado é Pedro Nuno Santos, fã confesso — e negociador — da geringonça.
O apelo ao voto de Catarina acabava com o apelo a quem “quer um entendimento à esquerda e quer derrotar a direita e o regresso ao passado”. Não por acaso: minutos antes, Fernando Rosas – que é fundador do Bloco, historiador e duas vezes preso político – dera uma aula de História no Incrível Almadense para intensificar seriamente o ataque ao Chega, para cumprir um dos principais objetivos eleitorais do Bloco: confirmar-se como terceira força e ficar à frente de André Ventura.
“É isso que determinará se se consegue barrar eficazmente o partido da extrema-direita racista e xenófoba”, explicou, a mesma que se disfarça sob a “verborreia oca do seu bufão em chefe” mas que na verdade, e na sua essência, “repousa nas velhas conceções dos setores mais reacionários”.
Rosas foi às características das ditaduras e “regimes que trazem o totalitarismo nas entranhas” e, como se estivesse numa aula, enumerou: “A normalização da violência antidemocrática e a exploração, fatalidade e necessidade de guerras imperialistas, obscurantismo” estiveram “sempre no âmago das ideologias da extrema-direita”. Já André Ventura, recordou, inspira-se agora no lema de Salazar (na versão 2.0, “Deus, pátria, família, trabalho”), que por sua vez se inspirava no fascismo italiano, e é por isso “o porta-voz da regressão civilizacional e da barbárie”.
Mais, carregou: “Foi à sombra desses valores que o regime fascista impôs perseguição política, tortura e violência policial, proibição da greve e sindicatos livres e criminosa guerra colonial sem fim”. E o que o Chega quer, frisou, é “o regresso ao passado”, que se conjuga agora com um presente “de barbárie neoliberal, cavalgando desencanto, descontentamento e medo”.
O apelo mais emocional – “pertenço a uma das gerações que pagaram com o preço da vida, da liberdade do exílio, da clandestinidade, o dever de resistir ao fascismo e à guerra colonial” – tinha um objetivo: pedir o voto no Bloco porque é preciso impedir o Chega de entrar “em qualquer modalidade de maioria parlamentar”. Até porque a direita, acusou, está “em processo de normalização e aproximação da extrema-direita”.
Por isso, no ano em que os anos passados desde o 25 de Abril passam a ser mais do que os que Portugal passou em ditadura, pediu que essa memória “seja honrada” e que se vote no Bloco porque “é a forma mais decisivamente colocada para lhe barrar [ao Chega] o passo como terceira força”. No domingo se verá se o objetivo que o Bloco assume com cada vez mais firmeza é cumprido.