Uma equipa de investigadores portugueses retratou em vídeo a evolução da proteína S do coronavírus, a mais essencial do SARS-CoV-2 no processo de infeção das células. O modelo tridimensional da proteína assinala as mutações que a proteína sofreu nas variantes que tiveram maior impacto na pandemia desde a versão original do vírus, descoberto em dezembro de 2019 na China, até à linhagem BA.2 da variante Ómicron, que emergiu na África do Sul em novembro do ano passado. O vídeo, com 81 segundos, mostra a história do vírus do SARS-CoV-2.

A animação saiu das mãos do Grupo de Modelação de Proteínas do Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), um centro de investigação científica integrado na Universidade Nova de Lisboa. Mas resulta de longos meses de colaboração com grupos de cientistas não só daquela instituição, como também do Instituto de Medicina Molecular (IMM) e do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC).

Diana Lousa, bioinformática que trabalha com o grupo liderado por Cláudio Soares no ITQB, explicou ao Observador que o vídeo foi desenvolvido num programa de visualização molecular que permite explorar estruturas tridimensionais de proteínas — até mesmo moléculas muito pequenas que nem os microscópios mais poderosos conseguem enxergar. A partir do software Pymol, os cientistas partiram das estruturas que existiam no vírus original e assinalaram os pontos em que tinham ocorrido as mutações que deram origem às consecutivas novas variantes descobertos nos últimos dois anos.

Esses pontos são, na verdade, aminoácidos — pequenas moléculas com átomos de carbono, hidrogénio, oxigénio e azoto que, quando ligados em cadeias, originam proteínas. As mudanças aparentemente mais subtis nestes aminoácidos, mesmo ocorrendo aleatoriamente durante a replicação dos vírus, podem condenar uma nova variante ao fracasso total ou então transformá-la na linhagem dominante. 

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Imagine que tem em cima da mesa duas mãos cheias de ímanes esféricos, uns com cargas elétricas positivas, outros com cargas elétricas negativas e alguns com carga neutra. Se os largar ao acaso para formarem um colar e deixar que se organizem sem intervenção, os ímanes vão juntar-se de acordo com as suas características: aqueles que tiverem cargas elétricas iguais vão repelir-se e os que tiverem cargas elétricas diferentes vão unir-se. No entanto, se tirar um íman com carga positiva e colocar outro com carga negativa no mesmo lugar, o colar vai ter de se reorganizar.

Variante indiana é um problema a dobrar: pode ser mais infecciosa e resistente aos anticorpos. Mas tem uma fraqueza

É isto que acontece também com a estrutura do SARS-CoV-2 quando sofre uma mutação. Quando a variante Delta surgiu na Índia, Miguel Castanho, bioquímico do IMM que também trabalha com a equipa do ITQB por detrás deste vídeo, explicou ao Observador que uma das mutações mais importantes da nova linhagem (a E484Q) significa que o ácido glutâmico — um aminoácido que existia na posição 484 — foi substituído por outro composto, a glutamina. No caso da mutação L452R, outra das mutações identificadas naquela variante, a leucina na posição 452 foi substituída por uma arginina. O detalhe é que os novos aminoácidos tinham cargas elétricas diferentes dos outros que lá estavam anteriormente.

Essas mudanças aconteceram por acaso? Sim. Mas vingaram também por acaso? Não: como os novos aminoácidos têm cargas elétricas diferentes dos que lá estavam antes, toda a proteína S foi obrigada a reajustar-se para acomodar as novas peças. E isso tê-la-á tornado mais vantagem em duas partes críticas: aquela que encaixa com o recetor das células, tornando-o mais infeccioso, e aquela a que os anticorpos contra o SARS-CoV-2 se unem, tornando-o mais resistente à resposta imunitária — tanto a induzida pela vacina, como a produzida após uma infeção natural.

Mas toda a investigação por detrás deste vídeo vai permitir perceber exatamente porque é que foi assim. E até já contribuiu para uma descoberta: “Na variante Delta, o recetor da proteína S [o domínio de ligação à célula] passa muito mais tempo aberto e tem uma estrutura muito mais favorável para interagir com o ACE2“, revelou Diana Lousa. A informação já consta num estudo em pré-publicação, que aguarda agora revisão pelos pares para vir a ser publicada numa revista científica.

Esta é uma das propriedades que os cientistas estão a analisar para perceber o impacto das mutações no sucesso das variantes — a forma como as proteínas se movem, uma vez que a proteína S abre-se e fecha-se — e “quanto mais tempo passa aberto, maior a probabilidade de interagir com o recetor”. A equipa está principalmente concentrada no tal domínio de ligação à célula, que é essencial para o vírus entrar nas células e o local onde os anticorpos se alojam. “As mutações aí deram frequentemente vantagens às novas variante”, acrescenta a bioinformática. Mas os cientistas querem descobrir exatamente porquê.

A ligação entre o vírus e a célula é a segunda propriedade sob o olhar dos cientistas, que fazem simulações com base em métodos computacionais, permitindo ver ao detalhe o que se passa nestas moléculas. Os métodos são baseados em modelos físicos e ajudam a aferir a força de ligação entre a proteína S e o recetor ACE2 quando uma infeção acontece: “Qualquer mudança de um aminoácido ali pode mudar as propriedades do vírus”, concluiu.

A investigação vai da teoria à prática: é que outro grupo do ITQB, liderado por João Vicente, assim como as equipas do IMM e IGC, estão a produzir e testar proteínas desenhadas pelo laboratório de Cláudio Soares, que conseguem ter uma interação ainda mais forte com este recetor. Depois de fabricadas, as proteínas são testadas para compreender que capacidade têm para se alojarem nos recetores, neutralizarem-nos e impediram uma ligação entre as células e os vírus. Algumas dessas proteínas têm funcionado, mas a equipa ainda está à procura de outras com um grau de afinidade maior. E a investigação prossegue.