A regulação internacional sobre cibercrime está longe de ser alcançada, apesar deste constituir uma realidade que afeta todo o mundo, lamentam os fundadores da única ONG portuguesa que participará na elaboração de uma convenção da ONU sobre o problema.

Em Portugal, o cibercrime é manchete, com o caso da operadora Vodafone, alvo de um ciberataque na segunda-feira, depois de terem sido realizados ataques informáticos aos sites dos grupos de comunicação social Cofina (Record, Correio da Manhã, CMTV, Sábado e Jornal de Negócios) e Impresa (SIC e Expresso), bem como à página da internet da Assembleia da República.

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A Polícia Judiciária está a investigar e a Procuradoria-Geral da República já disse que “os ataques informáticos são realidades” às quais o seu Gabinete de Cibercrime “tem estado atento nos últimos anos, não tanto pelo número de situações denunciadas, mas pela gravidade de que alguns casos se revestem”.

“Para a ‘comunidade internacional’, atores não-governamentais ou privados é difícil de entender que no momento em que 60% da população mundial está online, que os ciberataques podem atingir todos estes atores e numa altura em que se avança para o 5G não exista nenhuma convenção ou tratado internacional que regule minimamente as relações no ciberespaço”, disse à agência Lusa Pedro Latoeiro, do Center for Cooperation in Cyberspace (CCC — Centro para a Cooperação no Ciberespaço).

O CCC é o único organismo da sociedade civil portuguesa a participar nos trabalhos da Comissão Ad Hoc das Nações Unidas mandatada pela Assembleia Geral para elaborar – até 2024 – a primeira Convenção Internacional contra o Cibercrime.

A primeira ronda dos trabalhos, que esteve marcada para o dia 17 de janeiro, deve decorrer em abril em Nova Iorque.

Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, entre outros, fundaram em Lisboa o CCC, “uma plataforma independente” que reúne organizações não-governamentais, grupos de reflexão e fundações de África e da América Latina, contando com 14 associados.

“O CCC surge por termos verificado um vazio de representação das sociedades civis, em particular do Sul Global no âmbito do que são as negociações, do que é o presente e do que vai ser o futuro do ciberespaço” e com “a intenção de incentivar o debate em Portugal sobre o assunto”, disse à Lusa Luís Figueiredo, também fundador do organismo.

A ONG vai participar nos trabalhos daquela comissão ad hoc depois de ter apresentado uma candidatura que “contou com o apoio da diplomacia portuguesa”.

Para os fundadores do CCC, existe um reconhecimento implícito sobre a necessidade desta convenção. Um total de 125 estados já assinaram instrumentos de regulação, mas são laterais ou regionais, não constituindo ainda “instrumentos internacionais”.

Por outro lado, assinalou Latoeiro, “o ponto de partida desta reunião não é muito auspicioso porque existem profundas divisões entre os Estados nesta matéria (…) bem patente nas posições que já submeteram à Comissão”.

Existem Estados influentes que têm posições políticas difíceis de conciliar à partida, há desconfianças, sobretudo entre Estados Unidos, Rússia e China, sobre o “mundo cibernético” e a própria comissão foi criada por uma minoria de países.

“Há obstáculos à partida porque não há sequer uma definição internacional para o cibercrime, e não temos ainda a ideia se a convenção vai tratar temas do cibercrime e também da cibersegurança, que é um tema mais lato”, afirmou Latoeiro.

Acrescentou que o Japão propôs o debate sobre os hackers (piratas informáticos) ou o roubo através de meios informáticos.

Para os Estados ocidentais, em particular os Estados Unidos, os principais temas são a espionagem industrial e a desinformação.

A diplomacia chinesa tem mostrado uma grande preocupação com as questões relacionadas com a “atribuição pública de ataques cibernéticos”, defendendo critérios mais fechados sobre eventuais ataques de um Estado contra outro.

Para os países da África e da América do Sul, o tema mais importante é o reforço das capacidades digitais.

A comissão, uma iniciativa da Rússia, é formada por 14 Estados, incluindo Portugal, e está sob a tutela do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), sediado em Viena.

“As duas grandes novidades desta comissão são estar mandatada para produzir normas vinculativas e ter os trabalhos abertos à sociedade civil e, neste campo, nós vamos ser – através do CCC – os únicos portugueses a participar”, disse Pedro Latoeiro.

Por parte da sociedade civil participam igualmente empresas como a Microsoft e a Amazon, entidades privadas e universidade de todo o mundo.

“A verdade é que há muitos pontos de interrogação e daí a importância da primeira ronda, onde teoricamente se vai definir o objetivo, a estrutura e os elementos da convenção”, frisou o fundador do CCC.

Na prática, as decisões substantivas têm de ser tomadas por uma maioria de dois terços e “para haver” convenção é necessário ter em consideração os interesses dos diferentes grupos regionais.

“Apesar de ser a primeira, é justo dizer que esta comissão não começa do ‘zero’ na procura de normas vinculativas. Nos últimos anos, peritos governamentais trabalharam o tema especificamente, produzindo resultados substantivos, nomeadamente o reconhecimento de que a Carta da ONU se aplica ao ciberespaço”, disse ainda Pedro Latoeiro.