Era fisicamente impossível para qualquer espetador que tenha passado a juventude nos anos 90 não cantar ou pelo menos abanar a cabeça — o ritmo de algumas destas músicas podem ser difíceis de acompanhar — com os clássicos do hip hop que pautaram o ritmo do intervalo da Super Bowl este domingo. E era muito difícil criar um intervalo com seis rappers sem polémica e mensagens subliminares, como a National Football League preferia. Tão difícil que simplesmente não aconteceu.

Dados os traumas que a pandemia infligiu nos últimos dois anos, seria justo confundir a estrutura branca montada no centro do SoFi Stadium com três contentores para testagem à Covid-19. Mas não: foi o palco escolhido para um dos espetáculos mais aclamados de sempre no evento desportivo mais popular dos Estados Unidos, uma homenagem à comunidade rapper da costa ocidental do país.

Embora os 14 minutos da atuação tenham sido uma homenagem à história mais recente do rap, hip hop e do R&B — e quase numa passagem de testemunho de Dr. Dre, Snoop Dogg, Eminem e Mary J. Blige a um dos artistas mais populares do momento na área, Kendrick Lamar —, o intervalo da Super Bowl foi mais político do que a NFL desejava.

Depois de ter pedido aos artistas para evitarem mensagens que transformassem o concerto num “momento de guerra cultural divisiva” — o que mereceu críticas de um “repugnantemente censurado” Dr. Dre —, Eminem ajoelhou-se em palco assim que terminou a atuação de “Lose Yourself”.

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Sim, é certo que estamos a falar de música dos anos 90 e do início do milénio; e que muitas coreografias de crianças e adolescentes dessa época começavam e acabavam nessa mesma posição. Mas o gesto tem uma conotação social e política profunda nos Estados Unidos: é uma forma de protesto contra a violência policial em relação aos afro-americanos e às injustiças raciais no país.

A manifestação tornou-se popular no futebol americano quando o quarterback Colin Kaepernick se ajoelhou enquanto se entoava o hino num jogo em 2016. A única diferença entre o gesto de Eminem e de Kaepernick é que este último pousou o joelho direito no chão. O rapper ajoelhou-se com a perna esquerda.

E não parou aqui: outras polémicas marcaram o intervalo da Super Bowl. A roupa de Snoop Dogg, o primeiro cantor a entrar em palco, foi uma delas: depois de ter negado que pertencia ao gang Rollin’ 20 Crips, o rapper apareceu em palco com um fato azul com cornucópias, elementos comuns na vestimenta dos membros destes grupos. E Dr. Dre, a quem a NFL terá pedido para não dizer que “ainda não ama a polícia”, cantou mesmo o polémico verso de “Still Dre”.

Apesar das aparições surpresa de Anderson Paak a tocar bateria durante o espetáculo e de 50 Cent para interpretar “In Da Club” num palco que mimetizava uma discoteca à pinha, o rei da festa foi mesmo Dr. Dre: o rapper e produtor musical celebra em 2022 o trigésimo aniversário do seu primeiro álbum a solo, “The Chronic”, e foi um dos maiores impulsionadores das carreiras dos outros artistas que subiram ao palco no intervalo da Super Bowl.

É mencionado em muitas letras de Eminem — em “Forgot About Dre” até lhe dedica o título da música, que também interpretou —, partilha “The Next Episode” com Snoop Dogg, produziu o maior hit de Mary J. Blige, “Family Affair”, e um dos maiores sucessos de 50 Cent, “In Da Club”; e incluiu Dr. Dre num dos seus álbuns, ajudando a lançar a carreira do artista conterrâneo de Compton.

Nem só dos vivos se faz o hip hop que ainda hoje desafia os decibéis das colunas nas discotecas, por isso ninguém se esqueceu de um dos nomes incontornáveis daquela arte: coube a Kendrick Lamar, o benjamim do grupo, interpretar “California Love”, de Tupac.

E nada foi deixado ao acaso na aparição do artista: em “m.A.A.d city”, a primeira música que cantou, o termo “m.A.A.d” é uma referência ao grupo de hip hop “WC and the Maad Circle”, cujo criador deu origem a um grupo gangster associado à banda que Dr. Dre fundou, N.W.A.. Já “Alright”, a segunda canção, é considerada uma das músicas mais importantes do movimento Black Lives Matter.

Só depois da atuação de Kendrick Lamar, acompanhado por dançarinos ornamentados com faixas que diziam “Dre Day” (em português, Dia do Dre) é que as atenções se voltaram para o convidado surpresa, 50 Cent, que surgiu de cabeça para baixo no plano inicial da sua intervenção, tal como aparece no videoclip original da música que interpretou. A internet fez o resto.

Mas a circularidade do espetáculo obrigou as câmaras a voltarem-se novamente para Dr. Dre e Snoop Dogg, que já tinham aberto o intervalo. E a música que terminou o concerto não podia simbolizar uma finalização mais alusiva ao primeiro espetáculo da Super Bowl completamente dedicado ao rap e hip hop: “Still Dre”.