Faz 258 anos em 2022, é o principal museu da Rússia e um dos maiores e mais notáveis em todo o mundo. Está nas enciclopédias: o Museu Nacional Hermitage, em São Petersburgo, tem mais de três milhões de objetos, da pré-história até hoje, incluindo uma das melhores coleções mundiais de pintura renascentista (não falta Caravaggio nem Leonardo Da Vinci). Situado na margem do rio Neva, ocupa hoje cinco edifícios, o primeiro e mais conhecido dos quais é o grandioso Palácio de Inverno, cuja primeira inquilina foi a imperatriz Catarina, a Grande (1729-1796).

Mas como contar a história de um sítio destes? Séculos de história, camadas de informação, milhares de peças de arte que são joias da humanidade. O realizador italiano Michele Mally e a produtora Veronica Bottanelli aceitaram fazê-lo e em 2018 passaram quase um mês em São Petersburgo a criar um documentário que veio a estrear-se no ano seguinte naquela mesma cidade.

“Hermitage – O Poder da Arte”, assim se chama o filme, chega esta semana às salas portuguesas. Durante sete dias há sessões nos cinemas UCI do El Corte Inglés de Lisboa e do Arrábida 20 no Porto (segunda às 21h30, terça às 19h00 e quarta às 14h00) e também no Cinema da Villa em Cascais (quinta, sexta e sábado, às 16h30). A distribuição é assegurada pela portuguesa RISI Film, ligada à organização da Festa do Cinema Italiano e responsável pela plataforma online de cinema independente Filmin.

[trailer de “Hermitage – O Poder da Arte”]

“Nada que se compare a uma visita ao Museu do Prado”

O filme dura 90 minutos, é narrado e protagonizado pelo ator italiano Toni Servillo e consiste numa viagem cronológica por mais de 250 anos de história, com entrevistas a curadores e historiadores. As imagens atuais tiram partido dos interiores sumptuosos do museu, com grandes planos da arquitetura e das obras expostas, além de imagens de arquivo e excertos de obras clássicas como O Couraçado Potemkin, de Eisenstein.

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Ao telefone a partir de Milão, Michele Mally, de 60 anos, explica ao Observador que o documentário é “mais ou menos uma história russa contada a partir do Hermitage”. Não são mostrados segredos — a não ser o grande segredo que é a descoberta do museu propriamente dito. A equipa teve acesso aos depósitos, onde se guardam as peças que não estão expostas, mas não há outras revelações.

O que torna o museu relevante é obviamente a história e são as obras que ali podemos ver, mas do ponto de vista visual quis sublinhar a grandiosidade arquitetónica, porque é isso que o torna ainda mais especial”, diz Michele Mally. “Espero ter sido capaz de transmitir a sensação que se tem quando se está lá dentro. Grandes acontecimentos da Rússia tiveram o Palácio de Inverno como pano de fundo, respira-se essa importância histórica quando se visita o Hermitage. É um espaço muito especial, podemos visitar o Prado ou a National Gallery, mas não é comparável.”

Filmar o Hermitage foi um acaso que lhe aconteceu, sugestão de Didi Gnocchi e Franco di Sarro, ligados à produtora italiana 3D . Aceitou o desafio e em 2018 fez uma primeira visita a São Petersburgo para falar com os responsáveis pelo museu, nomeadamente o controverso Mikhail Piotrovsky, que dirige a instituição há 30 anos e é filho do anterior detentor do cargo. O contacto foi estabelecido através da empresa italiana de eventos culturais Villaggio Globale.

Ator Toni Servillo durante as filmagens, em 2018

Michele Mally não conhecia a antiga Leninegrado, muito menos o Hermitage. Diz-nos que se sentiu muito atraído pela cidade e que começou a investigar acerca do museu e da história da Rússia. O guião veio a ser escrito por Didi Gnocchi e Giovanni Piscaglia.

Quando se lhe pergunta se teve o apoio total da liderança do Hermitage e se sentiu abertura para o projeto, Michele Mally parece hesitar. “Penso que ficaram satisfeitos em participar”, responde. Mas teve de sujeitar o guião a aprovação prévia? “Não. Tivemos liberdade total. Limitaram-se a ver o filme já terminado e a reação foi muito boa.”

Quanto aos funcionários do museu, alguns dos quais aparecem no documentário, tiveram “uma atitude muito amigável”, segundo o realizador. “Trabalhámos até com uma equipa local e um produtor russo e foi exatamente como se estivéssemos noutro qualquer país europeu: um bom ambiente de trabalho, muito longe do estereótipo que aparece associado aos russos, segundo o qual têm uma atitude distante para com os estrangeiros.”

“Do ponto de vista visual quis sublinhar a grandiosidade arquitetónica”, diz o realizador

“O local onde a política se tornou arte”

As filmagens nas imediações do museu foram feitas quase sempre à noite, por vezes até de madrugada, sob o frio próprio daquela latitude. O realizador pretendia apanhar o menor número possível de pessoas, para deixar brilhar apenas a beleza do edifício. Pela mesma razão, as imagens interiores foram captadas à noite e num dos dias de descanso.

A presença de Toni Servillo como cicerone do espectador parece servir dois objetivos. Por um lado, cria cumplicidade a quem o reconhece o ator — já premiado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Por outro, funciona como visitante à descoberta do espaço. O realizador escolheu-o por já terem trabalhado juntos e serem amigos pessoais. “É um grande ator, com uma grande presença no ecrã. Além disso, era a pessoa certa para ler em off excertos de clássicos da literatura russa, como Gógol ou Dostoievski.”

No início, o ator-narrador afirma que o Hermitage é “o local onde a política se tornou arte”, o que segundo Michele Mally significa que desde o início, quando Catarina, a Grande pensou o museu, havia o fito de usar as coleções de arte como forma de afirmação do poder imperial, “o que hoje já não é bem assim, porque há grandes museus um pouco por todo o mundo”.

Uma “Catarina, a Grande” que poderia ter sido maior

Michele Mally tem ascendência checa e nasceu na Lombardia. Estudou na Scuola del Cinema di Milano e trabalha em cinema e design gráfico há mais de quatro décadas — e tem em Kubrick uma das grandes referências artísticas. Só nos últimos cinco anos começou a dedicar-se ao documentário, tendo assinado trabalhos em torno de outros artistas. São disso exemplo Klimt & Schiele — Eros e Psyche (2018) e Il Nostro Eduardo (2020).

“Foi uma escolha”, resumiu. “Estava a envelhecer e decidi que teria de me dedicar a documentários sobre temas que me apaixonam, como as artes e as letras.” Por estes dias está envolvido num filme sobre o pintor Edvard Munch e noutro acerca do Museu Egípcio de Turim.