Prateleiras vazias e uma situação tão grave como nem na pandemia se viu. Em Espanha, a greve dos motoristas, motivada pelo aumento do preço dos combustíveis, está a provocar perturbações na cadeia de distribuição alimentar, e já obrigou fábricas a suspender a atividade, por falta de matérias-primas. Ao décimo dia de paralisação, gigantes como a Cuétara, Calvo e Azucarera pararam as máquinas, enquanto outras, como a Heineken e a Danone, ameaçam seguir o exemplo.
O mercado português não está a ser poupado ao impacto da paralisação, ainda que, para já, as dificuldades no abastecimento sejam “pontuais”, garante ao Observador o presidente da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA).
“Temos tido dificuldades na receção de matérias-primas e de produto acabado”, refere Jorge Henriques. “Têm havido, pontualmente, algumas dificuldades na reposição de prateleira de alguns produtos. Mas são situações que temos vindo a contornar, porque a produção nacional, em algumas circunstâncias, consegue suprir essas dificuldades”, acrescenta.
A perceção é partilhada pelo diretor geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED), Gonçalo Lobo Xavier. “Neste momento, sentimos alguns atrasos nas entregas de produtos cosméticos e de puericultura. Alguns camiões atrasaram-se um ou dois dias. De resto, na grande maioria dos produtos essenciais não estamos a sentir qualquer impacto”, revela ao Observador. Isto porque, no que toca a produtos frescos, como fruta e legumes, “os nossos retalhistas abastecem-se, sobretudo, na produção nacional”, acrescenta.
Mas a situação pode agravar-se em breve, reconhecem os responsáveis. Se a greve não terminar “nas próximas horas”, poderá haver, “em algumas das nossas unidades de produção, alguns problemas com roturas de matérias-primas”, admite Jorge Henriques.
Para já não há motivos de preocupação” relativamente a prateleiras vazias, diz Lobo Xavier, “mas não sei se poderemos garantir o mesmo se a situação se prolongar durante duas ou três semanas”.
Para já, segundo os responsáveis, o impacto da paralisação dos espanhóis está a ser mais sentido no transporte de mercadorias portuguesas, não só de e para Espanha, como de Portugal para toda a Europa. Devido a piquetes “agressivos” do outro lado da fronteira, os camionistas estão a recusar fazer a travessia.
“Temos vivido atrasos e dificuldades na circulação de alguns transportes rodoviários e nos acessos a algumas zonas portuárias, porque estão sujeitas a piquetes e a controlos muito agressivos”, detalha o porta-voz da FIPA.
“Por outro lado, temos tido dificuldade em contratar transportes, porque muitos dos motoristas se recusam a circular, por receio de represálias”. De acordo com Jorge Henriques, estas já se fizeram sentir. “Além das provocações, houve alguns incidentes com danos materiais. A situação é verdadeiramente preocupante”, reforça.
“Do nosso ponto de vista, este conflito está a ser bastante violento, com interrupções aos motoristas de forma agreste, pedradas, cortes de estradas e incêndios em camiões”, detalha o líder da APED. Neste sentido, têm sido procuradas “rotas alternativas” às consideradas mais perigosas, e não tem faltado o recurso a escoltas policiais. “Temos tido a colaboração dos Governos de Portugal e Espanha para garantir que não passamos o mesmo que estão a passar os nossos vizinhos espanhóis”, refere Gonçalo Lobo Xavier.
A greve dos camionistas espanhóis teve início a 14 de março, como forma de protesto contra a subida do preço dos combustíveis. Os motoristas exigem medidas ao Governo de Pedro Sánchez, que esta semana propôs avançar com incentivos de 500 milhões de euros para compensar a subida nos preços do gasóleo, mas a proposta não convenceu os grevistas. Pelo contrário. Após a divulgação da proposta, juntaram-se mais empresas ao protesto, como a confederação patronal Fenadismer, que reúne mais de 32 mil empresas.
E se o impacto no abastecimento dos supermercados nacionais é, para já, residual, o mesmo não acontece nas vendas de produtos portugueses ao estrangeiro. “O corredor Portugal-Espanha é extremamente importante para a circulação de matérias-primas alimentares que abastecemos em Espanha e na Europa”, diz Jorge Henriques, admitindo que a greve “está a afetar algumas das nossas exportações, que circulam por camiões através de Espanha”.
Os contactos mantidos com as empresas associadas dão conta de um “agravar” da realidade nas últimas horas. “É uma situação extremamente difícil e perigosa, que pode vir ainda a provocar mais danos a uma situação que já é extremamente frágil, no decurso da invasão da Ucrânia”.
Jorge Henriques revela que têm sido mantidos contactos com o Governo português, através do grupo de acompanhamento da cadeia alimentar, que esteve reunido esta segunda-feira. O Executivo, representado pelo secretário de Estado das Infraestruturas, terá assegurado que “está a acompanhar a situação com o Governo espanhol”, refere Jorge Henriques.
“A resolução deste problema dos combustíveis tem de ser resolvida a outro nível. Os governos de Portugal e Espanha devem entender-se relativamente a esta matéria. Estas greves inorgânicas não são necessárias e só causam mais incerteza ao período extremamente difícil que estamos a viver”, conclui o líder da FIPA.
No setor do grande consumo em Espanha, multiplicam-se os apelos para uma intervenção “urgente” do Governo. Face à escassez de bens nos supermercados, o agroalimentar considera que a greve já é um problema de Estado, com “elevados custos” para a economia, segundo a Asociación Nacional de Grandes Empresas de Distribución (ANGED). O setor já pediu, inclusive, o recurso ao Exército para o transporte de mercadorias, mas a ideia foi prontamente descartada pela ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles.
Nas empresas, a preocupação cresce. A Danone avisou que irá parar as suas quatro fábricas de produtos lácteos no país caso não seja encontrada uma solução nas próximas horas. A empresa relata que não está a conseguir ter acesso a plásticos, cartão e paletes, necessários para embalar os laticínios que, por serem perecíveis, correm o risco de acabar no lixo.
A Nestlé e a Lactalis também já vieram avisar que estão a entrar no limite das suas capacidades. Já cervejeiras como a Heineken ou a Mahou revelam estar em dificuldades para fazer chegar os seus produtos às superfícies comerciais, aos bares e aos restaurantes.
O Executivo do país vizinho acredita que será possível chegar a um acordo com o setor esta semana, mas que não será possível aprová-lo antes da próxima terça-feira, 29 de março. O que significa que os possíveis apoios aos combustíveis não chegarão às empresas antes do mês de abril. Isto numa altura em que os camionistas afirmam perder dinheiro por cada vez que saem para a estrada.
O Executivo reúne-se esta quinta-feira com os representantes do Comité Nacional del Transporte por Carretera, para “abordar de forma concreta as medidas definidas e com a firme vontade de alcançar um acordo”, segundo uma nota citada pelo El Mundo. No entanto, o encontro pode não dar frutos, uma vez que a paralisação foi convocada pela Plataforma en Defensa del Sector del Transporte de Mercancía, que o Governo de Pedro Sánchez não reconhece como legítima.