É uma das vozes mais apaixonantes da literatura coetânea e apresenta-se agora num novo registo. O perfume das flores à noite nasceu de um convite para que Leïla Slimani passasse a noite num museu em Veneza. Partindo dessa noite insone, a autora fez um livro sobre a escrita – a pertinência, a obrigatoriedade, a urgência. Tudo no livro mostra o acto de escrever como uma força bruta.

Com os escritores, nunca é de fiar. O leitor habitua-se a que a escrita seja um instrumento para a manipulação, mas, estando consciente disto ou não, acredita na leveza e na abertura que Slimani traz para o diálogo. No livro, a autora põe à luz o que é a vida de quem escreve, a solidão que se deve impor, a forma como o romance cresce e sonega tudo à volta.

Para Slimani, a escrita tem de partir da solidão, do rompimento com o mundo exterior: primeiro é o isolamento, depois vem a minúcia. Quando a vida das personagens se impõe, a sua gira em torno da obsessão, e o mundo exterior apaga-se. E, se por um lado, há a disciplina – o exercício técnico, a gestão dos dias –, por outro, há o que aparece como maldição dos escritores. Ao longo do livro, a autora volta várias vezes às ideias de que a literatura nasce das cicatrizes, curá-las é impedir a escrita e ficar sem escrever dará um sofrimento maior do que o de escarafunchar a ferida aberta:

É preciso reabrir as cicatrizes, revolver as recordações, reaviver as vergonhas e os soluços antigos.” (p. 17)

Mas o escritor é um pouco como o opiómano e como todas as vítimas da adicção: esquece os efeitos secundários, as náuseas, as crises de ressaca, a solidão, e só se lembra do êxtase. Está disposto a tudo para reviver esse apogeu, o momento sublime em que as personagens começam a falar através dele, em que a vida palpita.” (p. 18)

[a literatura] preza as cicatrizes, os vestígios do acidente, as desgraas incompreensíveis, as dores injustas” (p. 91)

(…) um escritor está doentiamente preso às suas dores, aos seus pesadelos. Nada seria mais terrível do que curar-se deles” (p. 114)

Tal derivará da outra ideia que a autora repete – a de que a escrita, ainda que nascendo de uma ansiedade, permite a liberdade “imensa, vertiginosa” (p. 17). E, a partir desse momento, importa pouco o que antes só existia na cabeça, já que escrever é a hipótese redentora de arrancar a verdade ao mundo, um território de liberdade inteira.

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Livro: O perfume das flores à noite
Autora: Leïla Slimani
Tradução: Isabel Castro Silva
Editora: Alfaguara
Páginas: 144

Slimani expõe a sua infância, a vida em que homens e mulheres tinham hipóteses diferentes – mundos diferentes. E, com isso, mostra uma vida que existia amputada do mundo externo. Contra isso, existirá a literatura – ocupa as fissuras, perante ela a máscara social cai. Ali tudo é possível, inclusive inventar o mundo.

A escrita aparece como relação de intimidade entre o acto e o criador, que responde “a uma necessidade, a uma obsessão íntima, a uma urgência interior” (p. 45). Aliada a esta obsessão, estará sempre a rejeição da clausura, já que é o que permite à autora manter-se em movimento de expansão, chegar ao Outro, atingir o desconhecido. Desta forma, a sua relação com a literatura é que permite, também para o leitor, o referido movimento de expansão. Ao preencher vazios e lacunas, a autora cria outra realidade. É isso que o leitor recebe, e portanto é isso que analisa, tendo agora um novo olhar sobre uma hipótese de vida, mergulhando na intimidade criada por alguém no decorrer da sua relação íntima.

Isto é particularmente relevante se tivermos em conta que, na prosa de Slimani (romances e ensaio), fica claro o jogo que a literatura faz com o silêncio. Não só porque pega no indizível, permitindo que se atinja a verdade, sem os limites das correntes sociais, mas também porque permite um novo plano de intimidade que não obedece à contenção social. E, nisto, é ainda surpreendente que a autora, das mais coesas da produção literária, confesse o seu medo de não conseguir dizer nada que preste: “Em certos lugares, lugares saturados de palavras, de significados, lugares onde nos sentimos obrigados a sentir esta ou aquela emoção, o silêncio é a nossa melhor aposta.” (p. 38).

Fazendo-se acompanhar por outros autores que também reflectiram sobre o quotidiano e a necessidade da criação literária, Slimani inscreve-se num conjunto relevante de escritores que expuseram as dúvidas sobre o seu ofício. O que lá está parece sempre o mesmo: uma obsessão, uma dúvida, um não saber bem para onde se vai. Mas, como todos parecem perdidos, talvez o caminho seja estar fora dos eixos.