No regresso de Vhils às exposições individuais em museu, surge esta semana no MAAT, em Lisboa, uma proposta “monumental e inesperada” (adjetivos do texto de divulgação) com vídeos panorâmicos em câmara lenta que retratam cenas urbanas anteriores à pandemia. Na sala principal do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, da Fundação EDP, o artista visual fez instalar grandes ecrãs côncavos e paredes espelhadas que levam o visitante a mergulhar nas imagens em movimento que ali são exibidas.

Os vídeos foram gravados entre 2014 e 2020 em nove cidades onde Vhils tinha estado a apresentar trabalhos de outra natureza: Hong Kong, Macau, Xangai, Pequim, Los Angeles, Cincinnati, México, Paris e Lisboa. Recorreu a uma câmara de vídeo que grava dois mil fotogramas (frames) por segundo, sendo cada segundo transformado em um minuto e meio. Cada vídeo corresponde à cena de uma cidade, num total de 24 minutos cada um.

“Confluência das realidades das cidades em que vivemos”, “frescos contemporâneos da urbe” — eis o resumo de Vhils (ou Alexandre Farto) acerca da exposição, intitulada “Prisma”. A inauguração aconteceu nesta terça-feira e a abertura ao público é na quarta, podendo ser vista até 5 de setembro, o que significa que é a principal aposta do MAAT para o período de maior procura turística na cidade.

Numa visita prévia para jornalistas, um dos administradores da Fundação EDP, Miguel Coutinho, destacou que a exposição “é muito importante para o MAAT porque dá continuidade a um novo ciclo de programação com o novo diretor, João Pinharanda”, que tomou posse em janeiro, sucedendo a Beatrice Leanza. A primeira exposição já programada por Pinharanda abriu há algumas semanas na Central Tejo: “Traverser la Nuit”, com obras da Coleção Antoine de Galbert (no contexto da Temporada Portugal-França 2022).

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Vídeos foram gravados ao longo de seis anos

Em rigor, a exposição de Vhils faz-se acompanhar por outras duas inaugurações: “Naturezas Visuais”, ainda assinada por Beatrice Leanza, e “Interferências – Culturas Urbanas Emergentes”, com curadoria do próprio Vhils e também de António Brito Guterres e Carla Cardoso. Miguel Coutinho acrescentou: “Estas três exposições representam aquilo que o MAAT é e pretende ser: um museu inclusivo e aberto a todas as opiniões e sensibilidades artísticas.”

Estaria possivelmente a aludir a “Interferências”, a mais incomum das três propostas, onde se incluem obras de criadores periféricos acerca da vida suburbana lisboeta. O coletivo Unidigrazz, formado em 2018 por jovens autodidatas com pouco mais de 20 anos, é disso exemplo. “Trabalhamos todas as questões a que estamos expostos no nosso quotidiano”, resumiu o artista transdisciplinar Tristany, de Mem Martins, que integra os Unidigrazz.

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João Pinharanda — crítico de arte e programador, ex-adido cultural em Paris, ligado à criação da Coleção EDP e do Grande Prémio Fundação EDP Arte — fez notar que as obras da Coleção Antoine de Galbert na Central Tejo correspondem a uma exposição de “autores que estão na história”, enquanto no MAAT aparecem agora  “autores que vão ficar na história”.

Apontando para “Interferências”, o diretor do museu disse tratar-se de uma exposição “provavelmente pioneira em termos nacionais”, que oferece um olhar sobre criações vão tendo lugar em algumas galerias, aí se incluindo “a rua, a cidade”, mas que ainda não tiveram entrada generalizada nos museus. “Estes artistas devem estar na narrativa da história, porque a história da arte não tem uma via única, é feita de muitos caminhos, de divergências e convergências”, defendeu João Pinharanda.

“Depois de percorrer o labirinto ficamos completamente perdidos”

Na terça de manhã, a visita guiada começou por “Prisma”. Na timidez habitual, Alexandre Farto, de 35 anos, deixou como primeiras palavras “não tenho muito jeito para isto, vamos lá ver se consigo”. Prosseguiu: “Tentei ter um olhar despido sobre as cidades, tentei mostrar os contrastes, as zonas mais e menos privilegiadas, fazer uma justaposição.”

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A produção da exposição envolveu mais de 70 pessoas, segundo o criador. A organização dos ecrãs no espaço do MAAT — na Galeria Oval — tem por objetivo levar o visitante a perder-se num labirinto de estímulos visuais e sonoros. Esta última componente ficou a cargo do rapper Chullage (que aqui assina como SoundsLikeNuno).

“Depois de percorrer o labirinto ficamos completamente perdidos e provavelmente temos a noção de que a diferença entre nós e o outro talvez não seja assim tão grande”, sublinhou Vhils. “Os lugares de conflito ou de celebração são muito similares em todas as cidades.”

Retratos da autoria de Herberto Smith integram exposição “Interferências”, que é inaugurada em simultâneo com a de Vhils

É a segunda exposição que Vhils apresenta em nome próprio num museu português — depois de “Dissecção”, mostra de enorme êxito apresentada na segunda metade de 2014 na Central Tejo (então designada Museu da Eletricidade). No entanto, parte do material que agora está no MAAT já tinha sido visto em França (espaço CentQuatre-Paris, 2018), nos EUA (Cincinnati Contemporary Arts Center, 2020) e em Lisboa (Galeria Vera Cortês, maio do ano passado).

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Se Vhils começou nos graffiti e se tornou conhecido do grande público pelas intervenções escultóricas em que talha fachadas de edifícios abandonados, desta vez apresenta “outra dimensão, outra ambição e outra linguagem”, segundo João Pinharanda. É uma “continuidade poética e temática, mas feita através de uma rutura de linguagem. Ele já tem trabalhado com vídeo e som, mas agora está num estádio monumental”, acrescentou o diretor do MAAT.

Será que os apreciadores da obra de Vhils estranharão a nova linguagem? “Pode acontecer”, respondeu o artista. “Mas as exposições servem para mostrar o que estou a fazer a cada momento. A ideia de descoberta é natural em mim, faz parte do processo criativo.”