Há um novo rosto por detrás do ataque com mísseis russos, como o que terá matado 52 pessoas, cinco das quais crianças, numa estação de comboio em Kramatorsk, na região separatista de Donetsk, de acordo com as autoridades ucranianas. Aleksander Dvornikov, um herói de guerra russo e militar consagrado com experiência na Síria, coordena agora os esforços russos em território ucraniano. O ataque em Kramatorsk, que tanto o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky como Boris Johnson apelidam de crime de guerra, terá sido uma das primeiras ordens do general Dvornikov.
É a aposta do Kremlin para resolver o maior obstáculo que o regime de Vladimir Putin encontrou para o insucesso militar na Ucrânia: as falhas de comunicação entre os batalhões dispersos pelo país, que impediam uma reação coordenada à resistência ucraniana. O recuo da Rússia não será uma assunção de derrota, nem uma diminuição da tensão entre os dois países: pelo contrário, os sinais que chegam aos serviços de vigilância é que o Kremlin está apenas a reorganizar-se e a reabastecer-se antes de uma nova investida.
Aleksander Dvornikov já está na mira das autoridades desde 2015, quando assumiu o comando das Forças Armadas da Rússia na Síria. Era a primeira expedição bélica russa fora dos países da antiga União Soviética desde a saída do Afeganistão em 1989 — pelo meio, houve o conflito na Geórgia em agosto de 2008. Não era uma escolha óbvia: a carreira militar de Aleksander Dvornikov concentra-se sobretudo no exército, nas ações em terra firme, enquanto a operação na Síria dependia mais de uma estratégia aérea.
Mas segundo Jorgen Elfving, consultor sueco na área da defesa que escreve no The Jamestown Foundation, esse pode ter sido o segredo para o que a Rússia considera ter sido um sucesso na intervenção militar na guerra civil síria. Aleksander Dvornikov fez do combate uma “operação de armas combinadas” que agia em todas as frentes. O estabelecimento dessas conexões era a área de especialização do coronel-general: nos três anos de experiência como vice-comandante do Distrito Militar Central, a região administrativa militar no centro da Rússia, coordenou precisamente o comando estratégico conjunto desta unidade.
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E é especialmente eficaz quando precisa de trabalhar sob pressão, de forma célere e em várias frentes, tomando decisões imediatas de modo independente — de resto, tem a confiança do Kremlin para isso. Uma fonte russa disse ao especialista em 2016, após a presença na Síria, que “para lidar adequadamente com os deveres atribuídos, [é preciso] um líder militar forte com grande experiência de comando e combate, com confiança ter a confiança das principais pessoas da nação”: “O general Aleksandr Dvornikov é exatamente um comandante militar, que tem a inestimável experiência síria de comandando forças na guerra moderna complexa”.
Aliás, Aleksander Dvornikov frequentou a Escola Militar de Suvorov, entrou depois no Exército Soviético e continuou os estudos na Escola Superior de Comando de Armas Combinadas de Moscovo, começando em 1982 o percurso na área da gestão de crises militares no terreno. Foi soldado do Distrito Militar do Extremo Oriente, onde subiu a comandante da companhia e a chefe do estado-maior do batalhão. Depois de ter passado pela Academia Militar de Frunze, tornou-se vice-comandante de batalhão do Grupo Ocidental de Forças, que se estabeleceu na Alemanha Oriental após o fim da II Guerra Mundial até 1994.
A partir de 1992, a carreira militar de Aleksander Dvornikov baseou-se sobretudo no comando de fuzileiros, passando por vários distritos militares do país. De tenente-general, posição conquistada em 2012, passou a coronel-general em 2014. Em setembro de 2015, Dvornikov tornou-se então o primeiro comandante das forças armadas russas na Síria.
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Depois da presença na Síria, entre setembro de 2015 e março de 2016, Aleksander Dvornikov recebeu o título de Herói da Federação Russa, o mais alto dos reconhecimentos no país — é esse o significado da estrela dourada que o general ostenta na farda — e depois foi promovido a comandante do Distrito Militar do Sul, cargo que ocupa desde julho. Tornou-se “uma estrela em ascensão” na hierarquia militar, considerou Jorgen Elfving. Mas, em contrapartida, entrou nos radares do ocidente e foi alvo de sanções pela União Europeia em 2019 após a anexação da Crimeia.
Nascido em agosto de 1961 na cidade russa de Ussuriysk, nas proximidades da fronteira com a China e perto do Oceano Pacífico, pouco se sabe sobre a vida pessoal de Aleksander Dvornikov. Quem o conhece descreve-o como discreto, pouco dado às luzes da ribalta. Um homem que prefere manter-se nos bastidores, mas que saiu da sombra quando a intervenção militar russa na Síria terminou e o nome de Aleksander Dvornikov foi mencionado por Vladimir Putin como um dos indivíduos que mais contribuiu para o sucesso no país. Até àquele momento, ninguém sabia que o então coronel-general tinha coordenado as tropas durante seis meses.
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Aleksander Dvornikov concedeu uma entrevista exclusiva ao Rossiyskaya Gazeta logo em março desse ano. Nunca revelou detalhes das operações, mas levantou o véu à estratégia de “trabalho conjunto” que a Rússia aplicou na Síria: “destruir a infraestrutura e os canais de abastecimento”, “passar a ações ofensivas” conduzidas “simultaneamente em 15 direções” e, assim, “forçar os militantes a abandonar as operações em grande escala e passar a ações em pequenos grupos”, sem capacidade de coordenação entre si. Esse é o ponto em que a Rússia, com cerca de 100 batalhões no palco de guerra, está agora na Ucrânia e que o general terá de reverter.
Fonte militar do ocidente disse à BBC que a Rússia reorganizou a cúpula militar que dirige as operações na Ucrânia para melhorar a coordenação das unidades no terreno. Até agora, o exército russo mantinha cerca de 100 grupos operacionais com comandos independentes, sem liderança centralizada no terreno. Putin pode colocar à frente certos “imperativos políticos”, face a outras “prioridades militares” na hora de decidir os passos seguintes, segundo a BBC.
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“Há uma tensão entre a lógica militar de colocar a força adequadamente para uma operação russa revigorada em Donbas, potencialmente usando táticas mais apropriadas e aprendendo algumas das lições das operações desastrosas até agora; e um imperativo político para realmente seguir em frente com a operação e avançar rapidamente”, disse a fonte.
E há uma data concreta no calendário do Kremlin: o regime de Putin quer atingir sucessos bélicos concretos antes de 9 de maio de 1945, data em que a Rússia comemora o fim da II Guerra Mundial e a vitória dos Aliados sobre o Eixo. Até lá, a Rússia pretende conquistar Donbas e voltar a investir na chegada a Kiev, acreditam os especialistas.
“A menos que a Rússia seja capaz de mudar a sua tática e ser bem mais eficaz a usar todas as ferramentas para sua vantagem, se falhar a fazer isso, então será muito difícil ver como terão sucesso mesmo nestes objetivos limitados que impuseram a si mesmos”, disse o militar à BBC.