“Desafio” é uma palavra que vem muitas vezes à cabeça quando se ouve este Diaspora Problems do quarteto hardcore de Filadélfia, Soul Glo. O primeiro, e talvez mais importante, desses desafios é ler ou escrever o nome “Soul Glo” sem ficar com o jingle de “Um Príncipe em Nova York” que lhe dá origem desesperadamente preso na cabeça. E depois ir ouvi-lo em loop durante meia hora e descobrir que em tempos Nile Rodgers afirmou que esta era a sua composição favorita de toda a carreira. Uma espiral que só será resolvida ao rever o filme pela milésima vez, que remédio.
Mas bom, desperdiçado que está o primeiro parágrafo com algo que só tem marginalmente a ver com o novo trabalho dos Soul Glo, vamos tentar não perder muito mais tempo. Diaspora Problems é o quarto registo de originais da banda (com outro belíssimo EP, Songs To Yeet At The Sun, pelo meio) e é um disco tremendo. Se fosse só a chapada punk-hardcore de agressividade descontrolada que ameaça ser nas primeiras canções, já seria bastante bom. Um exercício de conforto de uma máquina bem oleada. Mas a estreia do trio na Epitaph Records é bem mais ambiciosa do que isso e os seus melhores momentos são aqueles em que os Soul Glo atingem um balanço entre a desventura caótica do hardcore com uma bela mistura de géneros, do hip-hop ao industrial e à eletrónica mais extrema.
[“Jump!! (Or Get Jumped!!!! (by the future))”:]
É uma abordagem refrescante numa subcultura que por vezes tende a agarrar-se demasiado às próprias tradições, mas que nos últimos anos tem visto estes momentos inventivos de ótima progressão. Já no ano passado, com Glow On‘, os Turnstile trouxeram o hardcore a uma acessibilidade rara, que não descarta o moshpit, mas também não estaria fora do seu elemento num teaser de um novo filme da Marvel ou coisa parecida. Glow On e Diaspora Problems são dois discos muito diferentes, pelo que esta será uma comparação algo injusta, mas é uma boa maneira de celebrar um género que está a transbordar de saúde.
O primeiro tema, “Gold Chain Punk (whogonbeatmyass?)”, deixa essa saúde bem evidente na velocidade com que Pierce Jordan, o vocalista, nos faz caminhar por um jornada de força e riffs de peso inquestionável a culminar no primeiro momento-hino do disco nas repetições berradas da frase que lhe dá título. “Jump!! (Or Get Jumped!!!)((by the future)).”, o single de lançamento, é uma dissecação dos efeitos do (frágil) sucesso dos artistas e da ansiedade que o acompanha, embebida num redesenho do hardcore frenético da sua fase mais embrionária de inícios dos anos oitenta. Diaspora Problems é um disco político, como o bom hardcore deve ser. Raça, democracia, educação ou saúde são temas que entram aqui de uma forma ou de outra, mas a demanda pessoal que Jordan nos traz nos versos nunca deixa que o disco caia em perigosa pretensão ou cinismo. A reflexão sobre saúde mental que é “(Five Years And) My Family” será o momento mais vulnerável do disco e talvez seja a sua melhor letra por isso mesmo.
[ouça “Diaspora Problems” na íntegra através do Spotify:]
Mas é nos seus momentos mais colaborativos que Diaspora Problems brilha verdadeiramente. Como nas incursões pelo hip-hop de “Driponomics”, com um verso da rapper Mother Maryrose onde questiona a streetwear de luxo como recompensa dos cansaços da sociedade. E sobretudo no momento “se só ouvirem uma, ouçam esta”, “Spiritual Level Of Gang Shit”, que é a faixa que fecha o disco, com McKinley Dixon e Lojii. O ponto mais alto em que o hip-hop e o hardcore coexistem em belíssima harmonia e em que a urgência e ambição cultural que o disco revela ao longo dos seus 39 minutos parece culminar, pelo menos para já.
É claro que um texto deste género tem de vir acompanhado da devida reserva de que isto não será para todos. É alto, barulhento e obviamente não será ideal para uma sessão de ioga ou para o jantar tranquilo de terça à noite. Mas será certamente um bom ponto de reentrada para quem possa andar afastado das andanças do hardcore há uns tempos, bem como para quem eventualmente esteja no início dessa exploração. Como os Refused, os Fucked Up, os já mencionados Turnstile ou os Converge, o hardcore encontrou nos Soul Glo mais um vértice que deve ser tudo menos ignorado.