“Are you an asshole [és um idiota, em tradução livre e simpática]?” A resposta politicamente correta seria o caminho mais rápido para não ter direito a um lugar na família Uber. Ainda assim, para bem do suspense da televisão, o espectador tem direito a uns segundos de dúvida em relação a Travis Kalanick. Um, dois… pronto, acabou o tempo. Kalanick é, de facto, um egocêntrico que adora usar como referências empreendedores e visionários improváveis – porque, no fundo, é isso que ele é, a mente brilhante que se lembrou de criar um serviço de motoristas, disponíveis sete dias por semana, 24 sobre 24 horas e capazes de competir com o preço dos táxis e ultrapassar largamente o conceito de conforto — Ubercab que mais tarde passou a Uber. Só que, a julgar pela narrativa da nova série da HBO Max, a ideia não saiu propriamente dos neurónios dele. Um amigo lembrou-se deste conceito de luxo numa app e Kalanick deu-lhe os retoques necessários para fazer dele uma inovação. Claro que, se pudesse, os louros ficariam todos para ele.
“Super Pumped” é uma antologia. Cada temporada é baseada numa empresa que mudou o mundo dos negócios. A primeira chama-se precisamente “Super Pumped – The Battle for Uber” e conta a ascensão e a queda de Travis Kalanick, o CEO destituído do cargo em 2017 depois de uns quantos de escândalos. O desfecho é conhecido e para os americanos é provável que a série nem tenha nada de muito surpreendente mas, mesmo que muita coisa seja ficção deliberada, os episódios são dinâmicos e conseguiram por um qualquer truque de magia (ou um poder de persuasão brutal) encher a banda sonora de temas dos Pearl Jam. “Even Flow”, “Evolution”, “Getaway” ou “Force of Nature” tocam com São Francisco como cenário. Só por isso já vale um bocadinho a pena, até porque estes senhores não são muito adeptos de ouvirem as suas canções escarrapachadas no ecrã.
[o trailer de “Super Pumped – The Battle for Uber”:]
https://www.youtube.com/watch?v=eNn8YJYAyEo
Além disso, os grafismos em forma de pop-up que interrompem ou completam a cena, os nomes dados aos principais peões com “fucking” no princípio, meio e fim, fazem lembrar uma coisa tarantinesca. Ai, esperem, há mesmo um paralelismo — não na narrativa, aqui ninguém anda a fazer graffiti de sangue com catanas — mas é Quentin Tarantino, ele mesmo, que surge de vez em quando como narrador. Ouvimos e pensamos: “olha, o Tarantino, está giro”. É só isto. Também não esperem participações dignas de Globos de Ouro. A culpa pode ser das falas que lhe deram. Eu voto nisso.
Se este elemento nem sempre funciona, há momentos em que a série está no seu auge: quando junta todos os egos no mesmo espaço e os deixa atacarem-se uns aos outros. Ou estamos com atenção ou perdemos o resultado do jogo, porque a troca de argumentos é intensa e rápida. Sabem o que isto faz lembrar? Certos momentos de “Billions”. Como não há coincidências assim tão flagrantes, tinha de existir mesmo um ponto em comum. Dois, até. Brian Koppelman e David Levien são criadores e produtores de ambas.
Paul Giamatti e Damian Lewis (até certo ponto) ganham no campo das interpretações, nem é preciso hesitar. Porém, “Super Pumped” tem um obstáculo. Contrariamente a “Billions”, não é pura ficção e, se quer manter alguma coerência, não pode dar-se a tantas liberdades criativas.
Joseph Gordon-Levitt interpreta um Kalanick que tem tanto de esperto e perseverante como tem falta de escrúpulos. Quando alguém o questiona, bate o pé só porque pode, descarta as pessoas sem qualquer tipo de empatia, quebra todas as regras possíveis e imaginárias sem grandes remorsos.
Segundo a história aqui contada, fez de conta que não viu o assédio sexual dentro da própria empresa; autorizou que fossem acedidos contactos, dados de GPS e fotos de clientes; contornou leis; e basicamente orgulhava-se de uma certa falta de bom senso. A voz da razão e da calma aparece na forma de Kyle Chandler que é o investidor Bill Gurley. Parece genuinamente boa pessoa (demasiado até?) e tem uma paciência superior à de qualquer pai, porque a vontade que dá em determinados momentos é tirar o brinquedo a TK (é assim para os amigos, sim?) e mandá-lo para o quarto de castigo. Anda por lá ainda Uma Thurman, que pavoneia o sotaque grego de Arianna Huffington, criadora do site “The Huffington Post”, e é uma espécie de figura maternal para Kalanick.
Em muitos pontos, “Super Pumped” faz ainda lembrar “WeCrashed”, a série da Apple TV+ sobre a WeWork, uma startup que revolucionou o universo do trabalho em comunidade. Nas duas histórias, a ideia virou fenómeno, espalhou-se pelo mundo, transformou-se em império de milhões e depois viu o seu criador cair em desgraça. A diferença é que a produção disponível na HBO Max (que é um original do canal Showtime) tem mais pinta, ritmo e o texto é superior — ah, e também não tem aquele sotaque impossível de Jared Leto. Em vez disso, temos só de aturar uma data de homens que desfilam por um escritório gigante onde todas as paredes são de vidro, comparam egos, fazem campeonatos de videojogos e desprezam as queixas de qualquer mulher em relação ao ambiente tóxico que ali se vive. E esta parte tem muito pouco de ficção. Mas, o que é que uma mulher esperava, não é verdade? Ali só há lugar para verdadeiros “assholes”, palavra de Travis Kalanick.