Em outubro, o PS descrevia o Orçamento do Estado para 2022 como o “mais à esquerda de sempre”. Agora, Fernando Medina defende que a política de “contas certas”, que quer prosseguir, é “uma política de esquerda”. Quem não concorda é mesmo quem está à esquerda do PS.
Contas feitas às medidas que acabaram por entrar na proposta final do Governo, o PCP ainda conta com algumas das suas bandeiras — mas aponta que, na atual conjuntura de guerra, inflação a crescer e poder de compra a diminuir, já estão datadas e desatualizadas.
Já o Bloco diz não ver mesmo “nada” do que defendia no articulado final. O que sobra da geringonça já é, neste documento, pouco — embora, em rigor, boa parte das exigências que PCP e BE fizeram antes de a crise política ter rebentado tivessem a ver com matérias extra-orçamentais.
Referindo-se ao primeiro Orçamento de Medina, com ironia, como um “milagre” económico (expressão da bloquista Mariana Mortágua) ou como prova da “obsessão pelo défice” (a comunista Paula Santos), Bloco de Esquerda e PCP interpretaram o primeiro Orçamento do período oficial pós-geringonça como uma prova de que não haverá grande margem para diálogo à esquerda. Com a maioria absoluta, o PS vê-se agora livre para executar “a política que sempre desejou”, rematava Paula Santos, em reação à apresentação do documento.
Os comunistas contam, ainda assim, com mais algumas das suas bandeiras vertidas na proposta final. E o PCP entende isto como um aproveitamento do PS. “As coisas que são positivas na vida das pessoas, aqueles que durante anos resistiram, lá foram admitindo e aceitando. Naturalmente que, do ponto de vista de capitalizar politicamente essas decisões, o Governo está por aí. E se estava no fim da legislatura passada, na aplicação destas medidas, fizeram cartazes e propaganda“, queixa-se o deputado comunista Bruno Dias no programa da rádio Observador “O sofá do Parlamento”.
E admite que há medidas do PCP no documento, mas são insuficientes: “Este Orçamento, quando coloca na lei algumas das questões que o PCP lutou muito e durante muito tempo para serem integradas, continua a ter a redução tarifária dos transportes públicos, mas também era melhor. Vamos discutir se vamos retirar a discussão tarifária para afastar as pessoas do transporte público? Vamos discutir cortes nas reformas em vez dos aumentos?“, ironiza.
Aumento das pensões entra, mas já não chega
Do lado dos comunistas, que António Costa tentou convencer até à reta final com a apresentação de medidas na 25ª hora, em outubro, há de facto conquistas que ficaram inscritas no documento. Entre estas incluem-se as que não tinham chegado a entrar na proposta chumbada em outubro, mas que António Costa prometera incluir depois, na fase de discussão na especialidade, que nunca chegou. Ainda assim, algumas destas medidas já são datadas, reclama agora o PCP.
É o caso do aumento extraordinário das pensões. Os comunistas defendiam que ao aumento anual das pensões mais baixas que conseguiram impor no período da geringonça (de 2017 a 2021) se devia juntar um aumento de todas as pensões até 1.108 euros, no valor de dez euros. E depois das duras negociações de outubro, foi isso que o Governo fez — e mantém agora, na versão (pouco) atualizada do documento: um aumento com efeitos retroativos a 1 de janeiro que chegará a 1,9 milhões de pensionistas.
O problema é que, se é verdade que essa era uma bandeira crucial para o PCP — pela qual Fernando Medina fez questão de puxar durante a apresentação do Orçamento, lamentando até que a crise política não tenha permitido que entrasse em vigor mais cedo — os comunistas notam que a situação mudou e que esses aumentos já não chegam.
“Numa primeira análise ao documento, nós dizemos que no aumento extraordinário de pensões, de extraordinário sobra só o nome. Os aumentos que são apontados pelo Governo são absorvidos pela inflação, sem falar ainda do crescimento dos preços que ainda se vão registar”, ataca Bruno Dias. Mais: esta semana, Jerónimo de Sousa, numa sessão com militantes, até já atualizava o objetivo, frisando que em conjuntura de guerra e inflação a crescer é preciso “enfrentar a perda de poder de compra dos reformados”.
“Esta perda de poder de compra que não tem resposta na anunciada proposta de aumento de dez euros que o Governo deveria ter concretizado em janeiro de 2022 e que, por opção do PS, foi adiada e transformada numa operação de chantagem eleitoral sobre os reformados”, acrescentou Jerónimo. Por isso, o PCP defende agora que é “da maior justiça” que sejam aumentadas todas as pensões — com um aumento mínimo de 20 euros em todas elas. Com a inflação, diz o PCP, os dez euros já lá vão.
Creches progressivamente gratuitas e transportes mais baratos
Há outras duas bandeiras clássicas do PCP que continuam inscritas neste Orçamento. Uma das mais emblemáticas é a da gratuitidade progressiva das creches: os primeiros passos tinham sido dados nos tempos da geringonça (para os dois primeiros escalões) e agora, mesmo sem acordos com o PCP, o Governo decidiu que as creches passam a ser gratuitas para todas as crianças que entrarem no ano letivo 2022/2023 “com acordo de cooperação com a segurança social”.
A promessa é que a implementação gradual da medida seja continuada nos próximos anos: em 2023/2024 a creche passa a ser gratuita para os dois primeiros anos de idade e no ano seguinte para todos.
O PCP já tinha conseguido fazer aprovar uma proposta neste sentido no Parlamento, em dezembro. Mas, na altura, num comunicado em que celebrava este “avanço”, criticava PS e PSD por “imporem o faseamento da medida, limitando o número de crianças abrangidas já em 2022” e recusarem “a criação de uma rede pública de creches que desse resposta à carência de vagas para todos os bebés até aos 3 anos”, com 100 mil vagas, na proposta do PCP.
Outra bandeira em que os comunistas insistem há anos e que tem continuação neste Orçamento é a manutenção das verbas para reduzir o preço dos passes, através do Programa de Apoio à Redução Tarifária dos Transportes Públicos, que recebe 138,6 milhões de euros do Fundo Ambiental.
Englobamento rende dez milhões
O englobamento de mais-valias mobiliárias especulativas de curto prazo, para quem estiver no último escalão, seria, em teoria, uma medida defendida por Bloco de Esquerda e PCP; mas, tal como está desenhada, os partidos chegaram a descrevê-la como um ato de “propaganda” e uma proposta “inócua”.
Agora, será posta em prática para “promover uma maior progressividade do IRS e justiça social”, na versão do Governo. Mas renderá, segundo a estimativa do próprio Executivo, apenas dez milhões de euros.
Bloquistas não têm “nada”
Do lado do Bloco, quando se pergunta quais as medidas que ficaram inscritas no documento, a resposta é curta e taxativa: “Nada”. Não é que os bloquistas não concordem fundamentalmente com elementos do documento, incluindo os que foram avançados pelo PCP — mas o braço de ferro desde outubro passa, precisamente, pelos nove pontos específicos que os bloquistas queriam ver no articulado, enquanto o Governo pedia que avaliassem o documento no seu conjunto.
Esses pontos iam da exclusividade na Saúde — uma vez que o Bloco considera o modelo de “dedicação plena” defendido pelo Governo, que é mais limitado, insuficiente –, à eliminação do fator de sustentabilidade e ao recálculo das pensões de longas carreiras contributivas e profissões de desgaste rápido para eliminar os cortes que persistem, para citar os exemplos mais emblemáticos.
O que não faz parte do Orçamento
Mas as restantes prioridades do Bloco — tal como muitas do PCP — diziam respeito a matérias extra-Orçamento, passando muito por alterações da lei laboral (ou, na expressão destes partidos, a “destroikização” do código laboral, eliminando normas do tempo da troika). Entre estas, contava-se a reposição dos 25 dias úteis de férias, a reposição do valor antigo por trabalho suplementar, o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador e a revogação da caducidade unilateral das convenções coletivas de trabalho.
Esta já tinha sido suspensa no Orçamento anterior, e o Governo chegou a disponibilizar-se para ir mais longe e criar um mecanismo de arbitragem entre patrões e trabalhadores durante a suspensão, que poderia ser prolongada. Mas, para os comunistas, a solução intermédia não colheu.
Outra das bandeiras essenciais do PCP era, também, extra-orçamental, embora os comunistas meses antes do Orçamento se referissem à prática de misturar dossiês em tempo de Orçamento como algo “indigno”. Dizia respeito ao aumento do salário mínimo, uma batalha que se prolongou até aos últimos dias da negociação, com o Governo a propor um aumento de 40 euros em 2022 (para 705 euros) e progressivamente até aos 850 euros em 2025 e 900 em 2026 (na altura, os comunistas apontavam que a promessa ia já além da legislatura e portanto da duração do Governo; agora, com a nova eleição, o Executivo PS chegará mesmo a 2026).
Para o PCP, não foi suficiente: os comunistas comparavam com o salário mínimo espanhol, que está fixado nos mil euros, e defendiam que subisse para 850 euros este ano (começando por 800 euros em janeiro). Nada feito. A geringonça desintegrou-se e a este Orçamento chegaram algumas medidas, longe das que a esquerda queria impor.