Era um encontro há muito esperado. A reunião entre António Guterres e Vladimir Putin ficou, no entanto, marcada pela discórdia em vários dos pontos discutidos. Começando pelo que se vive na Ucrânia: o Presidente russo fez questão de frisar que está a levar a cabo uma “operação militar especial”, enquanto o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) falou numa “invasão” ao país. A discordância não se ficou por aqui e o chefe de Estado russo chegou a acusar o alto responsável da ONU de ter sido “levado ao engano” sobre a situação em Mariupol.
Sentados numa mesa de seis metros (na qual também foram recebidos o chanceler alemão e o Presidente francês), Vladimir Putin foi o primeiro a falar — e também o primeiro a chegar à sala e a sentar-se, não esperando que Guterres o fizesse como convidado e de acordo com o protocolo. O Presidente russo começou por reforçar a importância das Nações Unidas, da qual a Rússia (no caso a União Soviética) foi um dos “membros fundadores”. “Não há nenhuma organização igual na comunidade internacional”, sublinhou o chefe de Estado russo, que disse subscrever o princípio de que “todos os Estados independentemente do tamanho, localização ou potencial” são “iguais”.
Abordando a situação na Ucrânia, “a base das conversações” desta terça-feira, Vladimir Putin lembrou o Euromaidan (ou revolução popular na Ucrânia), que designou como “golpe de Estado”. “A partir daí, recebemos pedidos de independência da Crimeia e do leste da Ucrânia”, disse o Presidente russo, que acusou seguidamente Kiev de não cumprir os acordos de Minsk e também de “genocídio”. “Tentámos resolver o assunto de forma pacífica e regular a situação. Fomos forçados a fazer isto”, alegou o chefe de Estado russo para justificar a invasão ao país vizinho.
“Os colegas estrangeiros não reconheceram essa necessidade”, disse ainda Putin, que explicou que tudo isto levou a que se iniciasse uma “operação militar especial” em território ucraniano — ao abrigo da Carta das Nações Unidas.
Apesar de ainda não ter sido acordado um cessar-fogo, Vladimir Putin garantiu estar disponível para que continuem as “negociações” entre os dois países, se bem que tivesse sinalizado que a “encenação” do massacre Bucha as prejudicou. A boa vontade da Rússia não chega, vincou, esclarecendo que os responsáveis ucranianos não estão dispostos a “comprometer-se” e a “aceitar as garantias de segurança”. “Foi por isso que eles recusaram o rascunho [das negociações de paz]”, justificou, acrescentando que existem pontos em que a divergência entre Kiev e Moscovo é maior, principalmente aqueles que fazem referência à Crimeia e ao Donbass.
Ainda sobre as repúblicas autoproclamadas de Donetsk e Lugansk, o Presidente russo recorreu à situação do Kosovo para justificar o seu pedido de independência. “Conheço muito bem os documentos do Tribunal Internacional da ONU, que dizem que a autodeterminação de um Estado não o obriga a pedir autorização do poder central para proclamar a sua independência.”
“As organizações jurídicas dos Estados Unidos e da Europa todos apoiaram [a independência do Kosovo face à Sérvia] o mesmo direito de insurgir contra o poder central”, realçou, apontando que o mesmo acontece agora em Donetsk e Lugansk.: “Já houve um precedente”.
António Guterres aproveitou para rejeitar a versão de Vladimir Putin, salientando que a ONU nunca apoiou a independência do Kosovo. Antes disso, o secretário-geral da ONU tinha frisado que a sua principal preocupação passa pela “situação na Ucrânia”. É necessário “respeitar a ordem e o direito internacional”, sendo que as visões dos dois líderes “divergem”. Ainda assim, o alto responsável diplomático garantiu que entende “uma data de reclamações” da Rússia, especialmente no que diz respeito “à situação da segurança global e europeia”. “Entendo alguns dos seus descontentamentos.”
Ainda assim, o secretário-geral da ONU assinalou que se tratou de uma “invasão ao território ucraniano” e que esta é claramente contra a Carta das Nações Unidas (contrariamente ao que Vladimir Putin tinha alegado). Fazendo questão de realçar que foi a Moscovo com uma “abordagem pragmática”, António Guterres manifestou-se “profundamente preocupado” com a catástrofe humanitária que tem lugar na Ucrânia.
Vincando que a ONU nunca foi envolvida nas negociações entre a Rússia e a Ucrânia desde 2014, António Guterres disse apoiar a iniciativa turca de levar a cabo um “diálogo bilateral” entre os dois países.
Sem embargo, o secretário-geral da ONU propôs o estabelecimento dos corredores humanitários em Mariupol e o fornecimento de ajuda humanitária. “Seria um grupo de contacto humanitário onde a Rússia, a Ucrânia e a ONU discutissem a situação em conjunto”, explicou, acrescentando que os civis que permanecem na fábrica de Azovstal seriam retirados. “É uma oportunidade para garantir a saída destas pessoas”, explicou António Guterres, que garantiu que este processo seria feito com o “máximo de transparência possível”.
A resposta de Vladimir Putin acabou por rejeitar por completo a sugestão de Guterres. Embora admitindo que se trata de uma “situação complicada e até trágica”, o Presidente russo assegurou que “não há combates” em Mariupol. “Acabaram, não há combates”, repetiu, destacando que 1.300 militares ucranianos se renderam. “Os feridos estão a ser tratados com cuidados pela parte dos nossos médicos qualificados”, avançou.
Os corredores humanitários também funcionaram, afirmou Vladimir Putin, relatando que saíram entre 100 e 140 mil pessoas de Mariupol. “Podiam ir para qualquer lado para a Rússia, para a Ucrânia, onde quiseram”, sinalizou, sugerindo mesmo que uma delegação da ONU, juntamente com outros organismos como a Cruz Vermelha, vão a Mariupol para mostrar o que “realmente se passa”. “Estamos dispostos a fazer isso.”
Sobre a fábrica de Azovstal, onde se encontram civis, Vladimir Putin enfatizou que está “totalmente isolada”, acusando os “nacionalistas” ucranianos de manter a população refém e de a utilizar como “escudo humano”.