A Igreja não pode “tolerar uma espécie de conspiração do silêncio” relativamente à crise dos abusos sexuais de menores cometidos por membros do clero, disse esta quarta-feira o bispo auxiliar de Braga, D. Nuno Almeida, que é também o coordenador da comissão de proteção de menores e pessoas vulneráveis da arquidiocese de Braga. A intervenção foi classificada pelo psiquiatra Daniel Sampaio, da comissão independente que está a investigar os abusos de menores, como “a mais importante proferida pela hierarquia da Igreja” até ao momento.

O bispo falava numa conferência organizada pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, dedicada ao tema “Infância e Adolescência: Trauma, Assédio e Abuso Sexual”, que teve lugar durante o dia de quarta-feira no pólo de Braga de Universidade Católica Portuguesa.

Durante uma intervenção em substituição do arcebispo de Braga, D. José Cordeiro (que estava em Roma para uma reunião entre uma delegação de bispos portugueses e as estruturas do Vaticano justamente sobre o problema dos abusos de menores), o bispo auxiliar de Braga fez um assertivo pedido de perdão às vítimas que sofreram abusos sexuais às mãos do clero católico ao longo das últimas décadas.

“Reconhecemos que a luta contra os abusos sexuais por parte de membros da Igreja ou no âmbito das suas atividades, no passado, não foi uma prioridade para a Igreja e houve erros, omissões e negligência. Pedimos perdão a todas vítimas! Pedimos perdão, por toda a falta de atenção ao sofrimento das vítimas de abusos sexuais e pela negligência na prevenção das suas causas!”, disse D. Nuno Almeida.

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“Não é possível manter a impunidade nem o silêncio, há sim que aprender a saber ler os sinais de alerta e tudo fazer para tornar a igreja e suas comunidades seguras para as crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis”, acrescentou o bispo, que classificou o silêncio como “o segundo maior inimigo das vítimas de abusos“.

“Por isso, um grande obrigado às vítimas que ousam quebrar o silêncio”, declarou D. Nuno Almeida.

Num discurso de encerramento após as intervenções dos psiquiatras Pedro Strecht e Daniel Sampaio (membros da comissão independente) e de outros oradores, o bispo auxiliar de Braga sublinhou que a Igreja tem de fazer os possíveis para se colocar no lugar das vítimas de abuso.

“Não conseguimos imaginar pior tragédia do que viver situações dramáticas, traumáticas, na mais completa solidão, temendo a insuportável repetição dos asquerosos acontecimentos, pois grande parte das vítimas sofre abusos continuados dos violadores”, disse o bispo.

“Sinceramente nunca seremos capazes de saber o que é ser criança ou adolescente e estar à mercê de terríveis lobos disfarçados de cordeiros. De padres e outros educadores perversos que antes de abusarem sexualmente, abusam da confiança e traem em toda a linha. Usam o seu estatuto, o seu poder, as suas falas mansas, supostamente bondosas e porventura encantatórias, para atrair vítimas e as massacrar“, acrescentou D. Nuno Almeida.

O bispo destacou que “a primeira lição” que a Igreja tem de “aprender e ensinar é a de não guardar silêncio” sobre os abusos. “Quem cala nunca se protege a si mesmo, só está a proteger o agressor. Pelas omissões, negligência e silêncio, mais uma vez pedimos perdão a todas as vítimas”, declarou.

“Nunca teremos palavras à altura do sofrimento dos que são abusados sexualmente, sobretudo quando são menores e completamente indefesos. Pior ainda quando os abusos são continuados, repetidos em clima de violenta ameaça e agressiva supremacia do mais forte. Arrepia pensar nisto, mas é uma realidade tão incontornável que vale a pena determo-nos sobre ela para ajudarmos os nossos filhos, netos, sobrinhos, alunos, amigos e filhos de amigos a precaverem-se contra potenciais abusadores“, pediu D. Nuno Almeida.

“Até há pouco tempo era impensável que uma mãe ou um pai acreditassem mais no filho menor do que no pároco, no chefe dos escuteiros ou em alguém aparentemente idóneo e com provas de confiança dadas. Como ouvimos, hoje em dia as coisas mudaram e existe uma maior atenção aos sinais de alerta. É importante que transmitamos às crianças e jovens que ao menor sinal de estranheza comuniquem com alguém”, concretizou o bispo. “Ou seja, por favor evitem o silêncio.

Para D. Nuno Almeida, importa acabar definitivamente com o silêncio que imperou durante décadas na Igreja Católica sobre os abusos de menores. “Na Igrejas e suas instituições não podemos tolerar uma espécie de conspiração do silêncio, pois o silêncio é sempre assassino e mata emocionalmente tanto como os crimes dos próprios criminosos“, reforçou o líder religioso.

“Temos e teremos, certamente, dias duros, de via purgativa, mas acreditamos que marcam uma nova era. Mas há que reforçar uma nova consciência sobre o poder de cada um para saber ouvir e ler os sinais de alerta, pois não é possível manter a impunidade nem o silêncio”, acrescentou, rematando com um apelo à “tolerância zero” e com a manifestação de disponibilidade por parte da arquidiocese de Braga para ajudar a comissão independente.

Comissão satisfeita com “mais importante” declaração da Igreja sobre perdão às vítimas

A comissão independente que está a investigar a crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica, e que promoveu a referida conferência, está satisfeita com o facto de a Igreja Católica começar a reconhecer o passado e pedir perdão às vítimas pelos crimes e pelo encobrimento.

“A intervenção em Braga do Bispo Auxiliar D. Nuno Almeida, na conferência-debate promovida pela comissão independente e realizada na Universidade Católica, foi, até agora, a mais importante proferida pela hierarquia da Igreja“, disse ao Observador o psiquiatra Daniel Sampaio.

“Porque não só porque assume a culpa pelos abusos e pede perdão às vítimas, mas também pela forma clara como critica o silêncio da Igreja durante tanto tempo“, explicou Daniel Sampaio.

A forte intervenção de D. Nuno Almeida surge depois de outros líderes da Igreja Católica em Portugal terem feito pedidos de perdão mais discretos ao longo do último mês, depois de a comissão independente ter anunciado a existência de indícios de encobrimento de casos de abuso de menores ao longo das últimas décadas, incluindo por parte de bispos portugueses ainda hoje no ativo.

Em 14 de abril, em plena Semana Santa, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, afirmou publicamente que a Igreja está pronta, “com plena consciência e compromisso, para reconhecer e corrigir erros passados, pedir perdão por eles e prevenir convenientemente o futuro“.

Menos de duas semanas depois, em 25 de abril, no arranque da última assembleia plenária dos bispos portugueses, em Fátima, o bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, reafirmou o “pedido de perdão, em nome da Igreja Católica”, a todas as pessoas que tinham passado “pela dramática situação do abuso“.

No final dessa assembleia plenária, a Conferência Episcopal emitiu um comunicado repetindo as palavras de D. José Ornelas na abertura da reunião: “Às pessoas que passaram pela dramática situação do abuso no âmbito eclesial, os Bispos reafirmam um sentido pedido de perdão, em nome da Igreja Católica, e o empenho em ajudar a curar as feridas. Agradecem também a quem se aproximou para contar a sua dura história, superando compreensíveis resistências interiores.”

Mais recentemente, a 10 de maio, numa conferência científica na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, organizada pela comissão independente, D. José Ornelas voltou a pedir perdão às vítimas, afirmando: “Aqueles e aquelas que foram vítimas destas dolorosas situações quero reiterar o pedido de perdão por toda a falta de atenção ao vosso sofrimento ou de prevenção às suas causas. Quero também exprimir gratidão pela coragem sofrida daqueles que ousaram ir para além da dor para denunciar aquilo e aqueles que a causaram. Espero que a vossa coragem libertadora possa motivar outros em situação semelhante a dar também esse passo, oferecendo um dos principais contributos para a libertação e para a criação de uma nova cultura para um futuro digno, justo e acolhedor.”