A procuradora Ana Carla Almeida liderou esta terça-feira buscas importantes a mais de 54 locais no âmbito da Operação Showroom, que investiga suspeitas de crimes de fraude na obtenção de subsídio e fraude fiscal qualificada em incentivos superiores a três milhões de euros financiados por fundos europeus. Mas já é certo que vai abandonar o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) até 31 de agosto.

Reconhecida como uma das maiores especialistas do Ministério Público no combate aos desvios de fundos europeus, Ana Carla Almeida decidiu abandonar a coordenação da secção de combate à corrupção no DCIAP (que inclui os crimes de desvio de fundos) e candidatar-se como procurador-geral adjunta a uma posição nos tribunais da relação. A cessação de funções foi aprovada em plenário do Conselho Superior do Ministério Público do passado dia 11 de maio e já foi publicada no Boletim Informativo do órgão de gestão do MP.

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Trata-se de uma baixa de peso para o DCIAP, numa altura que a execução do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) e de outros programas financiados com fundos europeus está a entrar em velocidade de cruzeiro. Recorde-se que o Governo de António Costa decidiu preterir a magistrada no processo de seleção para a Procuradoria Europeia, o que levou Ana Carla Almeida a avançar com uma queixa nos tribunais europeus — que acabou por não ser bem sucedida.

Magistrada critica falta de estratégia e de recursos para fiscalizar aplicação do PRR

Ainda antes de o seu pedido de cessação de funções ter dado entrada no Conselho Superior do Ministério Público, Ana Carla Almeida assinou um relatório sobre os trabalhos da Comissão de Auditoria e Controlo do Plano de Recuperação e Resiliência que contém duras críticas às falhas da fiscalização à execução da chamada ‘bazuca’ — um compromisso do próprio primeiro-ministro António Costa. O relatório foi inicialmente noticiado pelo Correio da Manhã e pela SIC Notícias.

A magistrada é a representante do Ministério Público daquela Comissão de Auditoria e Controlo do PRR, que ajuda a Estrutura de Missão Recuperar Portugal a fiscalizar o bom uso da ‘bazuca’ europeia que vai valer a Portugal um valor global de 16 mil e 644 milhões de euros. Até 3 de agosto de 2021, Portugal já recebera cerca de 2,2 mil milhões de euros do PRR.

Há ainda a possibilidade de Portugal vir a receber um valor adicional entre os 1,5 e os 1,6 mil milhões de euros porque o PRR foi negociado com base nas quebras do PIB de 2020 e 2021 e ainda existe mais uma opção: a de solicitar até ao final deste ano empréstimos adicionais de 2,3 mil milhões de euros.

As críticas do relatório da procuradora Ana Carla Almeida têm diversas origens, sendo as mais relevantes as seguintes:

  • Projetos não fiscalizados. Apenas foi fiscalizada a ocorrência de duplo financiamento de projetos de investimento que façam parte dos programas Portugal 2020 e do PRR, deixando de fora os projetos apoiados pelo Portugal 2030. Mais: também os projetos do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas que fazem parte do Portugal 2020 não foram devidamente fiscalizados. “Elementar regra de interpretação jurídica impõe que não deva o intérprete distinguir o que o legislador não tenha distinguido”, escreve Ana Carla Almeida. Ou seja, e em abstrato, existe a possibilidade de que alguns projetos tenham recebido um duplo financiamento de diversos programas financiados por fundos europeus, o que não é permitido.
  • Ausência de uma estratégia para o controlo. A magistrada do DCIAP critica igualmente a “ausência de uma Estratégia de Auditoria e Controlo” que chegou a ter um esboço acordado na reunião de 9 de fevereiro de 2022 da Comissão de Auditoria e Controlo do PRR, que apenas se reúne uma vez por trimestre, mas que não foi concluída.
  • Sistema de Controlo Interno precisa de “melhorias”. A Inspeção-Geral de Finanças realizou uma “auditoria de conformidade ao sistema de gestão e controlo interno do PRR” junto da Estrutura de Missão Recuperar Portugal e detetou que o mesmo “carece de melhorias, tendo tendo em vista assegurar a sua necessária e integral conformidade com os requisitos regulamentares e orientações”. Nomeadamente, aquelas relativas “à prevenção de conflitos de interesses, fraude, corrupção e duplo financiamento”.
  • Conflito de interesses. A Comissão de Auditoria e Controlo, que é liderada pela Inspeção-Geral de Finanças, dá “pareceres prévios ao pedidos de desembolso” que têm de ser apresentados às instituições europeias para que sejam feitos os pagamentos a Portugal. Mas, ao mesmo tempo, a mesma entidade deve “supervisionar e realizar auditorias ao funcionamento” do Sistema de Controlo Interno da Estrutura Missão Recuperar Portugal.
  • Faltam metade dos recursos humanos necessários. Há uma dependência da Estrutura Missão Recuperar Portugal face à Agência de Desenvolvimento e Coesão, o que faz com que exista uma “ausência de recursos humanos” para que o organismo que deve monitorizar o bom funcionamento do PRR possa cumprir as suas funções. Dos 60 trabalhadores previstos, apenas metade (29) tinham sido contratados até 20 de dezembro de 2021.