O Ministério Público (MP) e o BES apresentaram uma reclamação junto do juiz Ivo Rosa, alegando a irregularidade dos seus despachos que determinaram a audição de mais de 80 testemunhas durante a fase de instrução do caso Universo Espírito Santo.

O titular da ação penal opõe-se à audição do ex-governador Carlos Costa, enquanto que a massa insolvente do antigo banco dos Espírito Santo vê a audição de Pedro Passos Coelho como inútil.

Certo é que ambos contestam ainda a audição de mais de 46 testemunhas que o juiz de instrução criminal também aceitou a pedido dos advogados de Ricardo Salgado e de outros arguidos. Uns porque não têm qualquer conhecimento sobre os factos indiciários da acusação do MP e outros porque já foram ouvidos “3 ou 4 vezes”.

Juiz Ivo Rosa chama Passos Coelho para testemunhar na instrução do caso BES

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O assistente diz mesmo que o juiz Ivo Rosa que realizar “um verdadeiro julgamento, para escrutínio e apuramento exaustivo de todas as questões e teses adiantadas pelos arguidos”, extravasando dessa forma os princípios legais da fase de instrução criminal.

Quer o MP, quer o BES não só contestam esta visão da instrução do magistrado, como dizem que tal fará com que a fase de instrução se prolongue no tempo, quando existe “um sério risco de prescrição” de um número significativo de crimes: mais de 40, como o Observador avançou em março.

A inutilidade de ouvir Passos Coelho e o livro encomendado por Salgado

As caras mais mediáticos das testemunhas pedidas por Ricardo Salgado, e aceites pelo juiz Ivo Rosa, são o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho e Carlos Costa (ex-governador do Banco de Portugal).

Ora, a defesa de Ricardo Salgado invocou o facto de Passos Coelho ter proferido declarações em 2014 como primeiro-ministro que, diz a defesa, “tiveram impacto no risco reputacional do BES/GES e na evolução da cotação das ações do BES” e alude a uma notícia que refere o famoso pedido de ajuda de Salgado a Passos para que a Caixa Geral de Depósitos ajudasse o BES — o que foi rejeitado.

Os advogados Paulo Sá e Cunha e Miguel Pereira Coutinho contestam estes argumentos — e a decisão de Ivo Rosa de admitir o testemunho de Passos Coelho. “Muito embora esteja em causa matéria que em nada diz respeito ao objeto dos presentes autos (mas, sim, eventualmente ao processo de insolvência do BES), admite-se também a sua inquirição”, contestam os advogados da massa insolvente do BES.

Cerca de 40 crimes do megaprocesso BES/GES em risco de prescrever. Ricardo Salgado pode ver cair 15 dos 65 crimes de que está acusado

O mesmo tipo de argumento é invocado pela reclamação do MP apresentada junto do juiz Ivo Rosa sobre a audição de Carlos Costa — que será ouvido sobre um alegado interesse de um fundo de investimento, noticiado pelo Wall Street Journal, em injetar fundos privados no BES em 2014. Esta é uma “matéria que não é objeto dos autos”, lê-se na reclamação do BES.

O mesmo se diga sobre os dois autores do livro “Caso BES – A Realidade dos Números” e “Caso BES – O Impacto na Economia Portuguesa”: José Poças Esteves e Avelino Jesus. Os advogados do BES não compreendem “por que motivo se mostrará pertinente ouvir um cidadão sobre livros que escreveu”. Com a agravante de que, como sempre foi assumido pelos autores, os mesmos corresponderem a uma encomenda de Ricardo Salgado à empresa de consultadoria dos economistas.

As testemunhas repetidas

O MP e o assistente BES invocam nos respetivos textos das reclamações o principio legal de irrepetibilidade” para fundamentarem a sua oposição à repetição da audição de mais 20 testemunhas que já foram ouvidas em fase de inquérito pelos procuradores que investigaram o caso.

Isto porque a lei, defendem, só admite a repetição de testemunhos que já tenham sido prestados na fase de inquérito quanto tal se “revela à realização das finalidades da instrução”. “Ou seja, não se repete a prova já produzida no inquérito, mas somente a prova que não tenha sido produzida naquela sede”, lê-se na reclamação do MP.

Os procuradores Olga Barata e César Caniço recordam mesmo que a fase de instrução deve ser “célere” e que  existe um número limite de 20 testemunhas que podem ser ouvidas em condições normais durante a fase de instrução.

Pior: o MP e o assistente alegam que há 23 testemunhas que vão ser ouvidas novamente, sendo que algumas delas até já foram ouvidas durante a fase de instrução criminal. “Não se compreende a razão pela qual algumas destas testemunhas vão ser reinquiridas, algumas 3 ou 4 vezes, antes do processo chegar eventualmente à fase de julgamento”, contestam os procuradores.

É por tudo isto que os advogados Paulo Sá e Cunha e Miguel Pereira Coutinho dizem que se “antevê-se pois a realização de um verdadeiro julgamento, para escrutínio e apuramento exaustivo de todas as questões e teses adiantadas pelos arguidos, dessa maneira se extravassando a finalidade” da fase de instrução criminal. E quando “se verifica um sério risco de prescrição.”

O MP faz igualmente questão de recordar na sua reclamação o objeto da acusação. De forma simples, são:

  • todas as operações financeiras (transação e circulação de instrumentos de dívida do BES, entre outras) realizadas sob o comando estratégico da administração liderada por Ricardo Salgado, assim como a alegada falsificação da contabilidade das holdings do Grupo Espírito Santo
  • E a venda da dívida dessas mesmas holdings aos clientes institucionais e particulares do BES quando aquelas sociedades controladas pela família Espírito Santo já estariam alegadamente falidas.

Logo, recordam os procuradores Olga Barata e César Caniço, o objeto da acusação não é a resolução do BES decidida pelo Banco de Portugal ou a decisão política tomada pelo Governo de Passos Coelho — os principais motivos que levam a defesa de Salgado a chamar Passos Coelho e Carlos Costa.

Ivo Rosa mudou de posição

Quando declarou aberta a instrução do processo, o juiz Ivo Rosa tinha limitado o número de testemunhas por razões idênticas às agora invocadas pelo Ministério Público. Mas aparentemente mudou de opinião depois dos requerimentos de vários advogados no processo.

No despacho de abertura de instrução concluído em finais de janeiro, o magistrado marcava a audição das primeiras testemunhas, mas recusava outras. Por exemplo, em relação ao arguido António Carlos Leandro Soares, antigo diretor do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES, admitia duas testemunhas que já tinham sido ouvidas em inquérito “atentas as razões apresentadas pelo arguido”, no entanto em relação à testemunha Cláudia Boal de Faria, a ex-diretora do Departamento de Gestão de Poupança do BES, reduzia de 17 para 4 as testemunhas a prestarem depoimento. Isto porque, justificou, a maior parte delas iriam falar sobre os mesmos factos o que “para além de constituir um fator de protelamento dos atos, em nada contribui para as finalidades da instrução”.

O mesmo alegou em relação às seis testemunhas arroladas por Pedro Luís Costa, ex-funcionário do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES e administrador executivo da Espírito Santo Activos Financeiros, reduzindo-as para quatro, assim como às 22 testemunhas que o antigo diretor de compliance e de auditoria do BES, o arguido João Martins Pereira, chamou. “Na verdade, o apuramento dos factos não se alcança pela quantidade dos depoimentos, mas sim pela qualidade dos mesmos”, advertiu.

Já quanto às 82 testemunhas arroladas por Ricardo Salgado e às 74 pedidas pelo seu braço direito Amílcar Morais Pires, o juiz pediu que a defesa especificasse a finalidade destes depoimentos, estabelecendo que por uma questão de economia processual não iria permitir mais de duas testemunhas por cada facto.

Já depois deste despacho, os advogados dos arguidos vieram invocar várias razões para chamar estas testemunhas, acabando Ivo Rosa por admitir a audição de grande parte delas. Só da parte de Ricardo Salgado são 51 testemunhas, algumas serão ouvidas por carta rogatória, da parte de Amílcar Morais Pires, depois do apelo de Ivo Rosa passaram a ser 13.